De
regresso com as nossas conversas, “visitamos” desta vez a Inglaterra, e o scout
Pedro Teles. Conhecemos o Pedro através das redes sociais onde lhe pedimos para
ele partilhar um pouco daquilo que é o Futebol onde tudo começou, tocando em
variadíssimos pontos que achamos de interesse.
O Pedro
tem 32 anos, é natural da Guarda e conta com formação base na área da saúde.
Tem o sonho de se tornar scout no futebol profissional e tendo focado grande
parte do seu tempo livre em estudar e analisar o jogo de futebol e os seus
intervenientes.
Trabalhou
com o Mansfield Town da League 2 e além disso tem tido mais trabalho com
empresas de recrutamento e consultadoria de agentes em Inglaterra e Dinamarca,
mas nada profissional.
Começou
por se focar em scouting colectivo - do "próximo adversário" mas
ultimamente tem tido um grande prazer em trabalhar na área da identificação de
talento.
1. Em primeiro lugar há algo de superior que queremos muito
entender que nos causa alguma confusão: os Quadros Competitivos ingleses.
Podes-nos falar sobre eles e explicar-nos a diferença em relação aos os nossos?
Em geral, a maior diferença dos quadros competitivos
passa pelo maior numero de escalões profissionais. O futebol profissional vai
desde a Premier League – Championship – League One e League Two e depois existe
a National League e a National League Conference Norte e Sul que são as 5ª e 6ª
divisões mas já semi profissionais. Abaixo dessas ainda existem a Isthmian
League e a Isthmian “Regional” mas já são de futebol amador. E por fim cada
região tem as suas taças locais e regionais. O investimento e a dimensão dos clubes,
comparativamente às ligas portuguesas é incrível.
Depois o futebol jovem tem a Premier League 2 – Sub 23 e
a Premier League Sub 21, além dos campeonatos Junior, Juvenis, etc. A EFL ainda
organiza a Taça e Taça da Liga e depois há torneios como a Vase Cup ou EFL Trophy
onde jogam equipas de Sub 21 com equipas da League 1 e 2. Em geral à uma grande
variedade de competições e uma exposição ao futebol profissional maior para as
equipas e jogadores mais jovens. Não sei se respondi à vossa pergunta!!
2. E nos escalões mais baixos e de iniciação. Também é uma
estrutura idêntica a Portugal, com as competições fundamentalmente
regionais?
Sim. Do meu conhecimento qualquer pequena associação ou
colectividade ficam registadas na Federação e ganham o estatuto de Charter
Standard Club e ficam habilitados a jogar desde que cumpram certos requisitos.
As competições estão organizadas essencialmente a nível local e regional e com
selecções regionais de todos os escalões também.
3. Sobre os mais novos… Qual a tua opinião sobre a equipa de
elite dos Sub5 do Manchester City? Não se estará a exagerar com o grau de
exigência? Não estará a Inglaterra a tentar ser “profissional” de mais?
Creio que não. A
ideia base é fomentar o “divertimento” em futebol e não criar a ideia de
estrutura profissional, contudo simular esse ambiente em torno dos jovens:
equipamentos, tecnologia, treino e treinadores competentes. Esse jovens são
permitidos a jogar em outros clubes e na escola, etc, mas simultaneamente serem
expostos a uma estrutura profissional. Outro dos aspectos mais importantes é a
educação dos pais/ educadores em torno dos jogadores. Veremos quais os
resultados destes métodos nos próximos anos.
4. Já sobre os escalões mais velhos de formação… Nas tais
competições da FA que falaste, em que equipas de Sub21 de clubes da Premier
competem com clubes da League 1 e League 2 temos visto que essas equipas Sub21
são muitas vezes limitadas a nível individual e colectivo... Fará sentido os
clubes terem estas equipas se não as valorizam?
Tal como em Portugal existem equipas juniores, B, Sub 23.
Creio que faz sentido manter estas equipas uma vez que há espaço para todos
evoluírem de uma forma e ritmos diferentes. Há jovens de 16 anos nas equipas
séniores e outros com 20, 23 que mostram dificuldades em apresentar-se a um
nível mais elevado. Estas diferentes competições permitem aos clubes manter os
seus talentos e faze-los desenvolver conforme o seu nível individual. Contudo há
dois aspectos com os quais não concordo:
- Equipas que têm dezenas de jogadores e mante-los em
equipas de desenvolvimento ou empréstimos constantes (Chelsea, Arsenal) sem
nunca os apoiar na direcção do plantel principal;
- Apesar de compreender a necessidade de unificar a
estrutura de treino do clube para preparar os jovens para a realidade da equipa
sénior, raramente existe uma estrutura no clube (conforme existe no Barcelona)
e estas equipas acabam por ser formatadas para irem de encontro ao que o
treinador principal pretende e tudo volta praticamente ao zero assim que há
mudanças na equipa técnica.
Vi recentemente um jogo de Sub-23 entre um clube da
Premier League e da Bundesliga e a diferença é gritante, entre o formatar os jogadores
para o futebol sénior do momento actual da equipa e o foco no desenvolvimento
do jovem jogador e dos princípios de jogo.
5. Passando para o Treino na Formação, um estudo recente da
Barça Innovation Hub indicou algumas diferenças metodológicas Inglaterra e
Portugal. Nomeadamente no que diz respeito aos exercícios que recrutam a tomada
de decisão de uma forma passiva (mais em Inglaterra), ou activa (mais em
Portugal). O Treino na Formação é assim tão diferente entre os dois países?
Não tenho conhecimento da realidade de
treino em Portugal, mas pela minha curta experiencia de treino aqui, julgo que há
verdadeiramente uma cultura de decisão passiva e limitação de desenvolvimento
dos jogadores em formação. Infelizmente ainda há muitos treinadores que baseiam
as suas sessões em treinos de repetição e drills para colocar o jogador em situações
de desenvolvimento técnico contudo bastante longe da realidade competitiva.
Retiram toda a imaginação e capacidade de decisão e de jogo em contexto real,
colocando os jovens a rematar a baliza ou a fintar barreiras sem os incluir na
tomada de decisão para alem da direcção do remate ou do drible.
6. Em Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol está a
começar a implementar o Processo de Certificação de Entidades Formadoras de
Futebol. Em Inglaterra algo de parecido já funciona há alguns anos com as
chamadas “Categorias”, certo!?
Sim, a FA “obrigou” os clubes que estão patenteados na
federação a ter os seus treinadores todos certificados pela federação e os
clubes têm certificados de entidades formadoras e pessoal especifico que
trabalha na área do desenvolvimento pessoal e criam formação dentro dos clubes
para manter todo o staff técnico actualizado. Além disso a FA criou o Elite
Player’s Perfromance Plan (EPPP) para criar standards e categorias de academia
(Sub 9 até Sub 23). E as academias são categorizadas entre nível 1 e 4 (melhor
para menos bom) dependendo das infra-estruturas, do investimento dos clubes, da
formação dada aos jovens e apoio técnico do clube, etc.
7. Há tempos lemos um artigo onde falava na quantidade
absurda de jogadores oriundos da zona de Londres que jogam ao mais alto nível
europeu. O que faz deste nicho ecológico ser uma das regiões do Mundo com maior
número de craques por metro quadrado?
Não tenho noção exacta dos dados mas
certamente que há imenso talento a nascer na região de Londres. É uma área
gigantesca, com imensos clubes de futebol e muitos deles com academias de qualidade
e redes de recrutamento de muito bom nível. Dependendo no nível da tua
academia, podes ser autorizado a contratar jogadores jovens numa rede
geográfica maior e trazer o melhor talento para Londres. Além disso é como
transferir para a realidade portuguesa, a dimensão de lisboa e toda a margem
sul e região urbana. Há clubes em cada esquina, olheiros, centros de treino e
então há identificação de talento muito maior. Além disso há uma enorme
multiculturalidade e paixão pelo futebol, então muitos dos clubes com maior
capacidade, desenvolvem programas na comunidade e têm treinadores nas escolas e
em bairros a desenvolver jovens dentro do futebol o que leva a que surjam mais
jovens talentosos nessa zona. E pelo que tenho encontrado em conversas, há também
muitos treinadores experientes ou consultores/ agentes que criam centros de
formação/ academias que funcionam como fábricas de jogadores e que preparam
jovens para trials em clubes maiores quando estiverem dentro da idade para
assinarem contratos profissionais. Há mais olheiros, mais agentes, mais
futebol. Tudo isto leva a que haja mais probabilidade de encontrar talento do
que em zonas mais pequenas. O Norte – Manchester, Liverpool, Birmingham são
excelentes centros também.
8. Vários jogadores portugueses contam com formação inglesa
no seu currículo: Ruben Lameiras (Famalicão), Fábio Abreu (Al-Batin), Ronaldo
Vieira (Hellas Verona), Leonardo Lopes (Cercle Brugge), Tiago Augusto (Sporting
Sub19) são alguns exemplos de jogadores que passaram pelo contexto formativo
inglês, e que embora não fossem muito mediáticos, alcançaram níveis
competitivos interessantes... Há outros
exemplos de jovens jogadores portugueses que podem vir a chegar a um bom
patamar nas próximas épocas?
Sem dúvida. O futebol português e acima de tudo a
formação, são bastante reconhecidos aqui em Inglaterra. O mediatismo dos
trabalhos do Nuno Espirito Santo, do José Gomes no Reading, Carvalhal no
Sheffield, trouxeram muita atenção à qualidade do treino em Portugal. Depois
todos os jogadores que referiram e os jogadores mais velhos como o Lucas João e
a equipa do Wolverhampton levaram a que o jogador português e a aposta no jovem
português faça sentido pelo nível de maturidade e qualidade que temos. O
Domingos Quina fez a formação quase toda em clubes da Premier League e está
agora no Watford, Gonçalo Cardoso está no West Ham, João Virginia do Everton e
o Fábio Silva e o Vitinha são outros exemplos de jogadores que estão a terminar
a sua formação por aqui.
9. É interessante que alguns deles até passaram por equipas
mais humildes… o que nos leva a inferir que em Inglaterra, na dualidade
Treino/Competição, é muito mais a vertente a competitiva que provoca um maior
desenvolvimento dos jovens jogadores, do que a qualidade do processo
competitivo... Estaremos certos!?
Sim. É um pouco difícil compreender essa situação. É mais
uma questão clube a clube. De uma forma geral, como referi noutra questão, os
jogadores são expostos a uma vertente competitiva muito maior. Há jovens de
17/18 anos com presenças regulares nas League 1 e até no Championship – ligas
profissionais e bastante competitivas (uns por aposta na formação, outros por
necessidades financeiras). Mesmo equipas de topo, por vezes utilizam bastantes
jogadores Sub 20 em jogos de taça, sem qualquer problema. E há sempre a EFL
Trophy onde jogam Sub 21 contra equipas seniores. Além disso os clubes apostam
de forma diferente nas suas academias e há clubes da League 2 com academias de
categoria 2, ao nível ou melhor que clubes da Premier League. Por outro lado,
muitos clubes, principalmente os de topo, têm exigências competitivas maiores e
muitas vezes focam-se nos títulos e não no processo de desenvolvimento e há
imensos jogadores que vão saindo das academias apesar de serem muito talentosos
e acabam a jogar em outros ligas ou países.
10. Será devido a essa grande competitividade que conhecemos
tantos exemplos de jogadores ingleses que vieram ou passaram pelo
"fundo" em Inglaterra, como Vardy ou Mings? Em Portugal isso é quase
impossível…
Julgo que estes casos tem uma explicação simples. Por um
lado ha um mercado interno muito forte e uma grande aceitação de meritocracia:
Independentemente da idade ou do currículo, se és o melhor marcador da quarta divisão
ou um jogador que mostra um conjunto de qualidades pouco comuns, alguém vai
analisar o jogador em todas as suas vertentes e tentar promove-lo a um escalão
superior ou a uma equipa melhor. Alem disso, apesar das evidentes diferenças
entre divisões, há sempre um
grande nível de competitividade e
intensidade o que faz com que para muitos jogadores, a transferência de competências
entre ligas seja muito fácil. Em Portugal isso não parece acontecer e só mais
recentemente jogadores do CP tem sido contratados para a Liga 2 e até para a
Primeira Liga.
Penso também que a forte cultura futebolística, do amor
ao clube local e do investimento no futebol semi profissional alicerça este desenvolvimento.
Vários departamentos de scouting começam a expandir-se em pequenas unidades
regionais e assim fica mais fácil encontrar alguns destes casos de grandes
jogadores em clubes de menor dimensão. Mas nem todos são Vardys e Mings e há
muito a melhorar para que mais jovem
continuem em busca da sua oportunidade e de continuarem a sua carreira no
futebol.
11. Ainda sobre a particularidade dos jogadores ingleses nos
oferecem… Muito se tem lamentado no Futebol mundial o desaparecimento de
jogadores da posição 10. Contrariando por completo essa "verdade
absoluta" é talvez a Inglaterra o país que mais jogadores desse perfil tem
no alto nível. Alli, Mount, Maddison, até mesmo Grealish poderá desempenhar
essas funções... A Inglaterra não é propriamente conhecida por ser uma fonte de
criatividade futebolística, certo?
O menor numero de jogadores “10” parece ser um problema
global e a Inglaterra nunca foi nem um mercado produtor de grandes talentos, nem
“produtor” de jogadores propriamente criativos e tecnicamente perfeitos (com excepções
claro). Os ultimos 5-10 anos tem mostrado uma realidade diferente, com a
Inglaterra a conquistar titulos no futebol de formação e não só a colocar
jovens talentos em grandes ligas, como a utilizar algum desse talento no
mercado interno (por opção ou por necessidade financeira). O surgimento de um
grande numero de jogadores mais criativos, tem a meu ver, base na mudança de
trabalho feita pela FA nos últimos anos ao nível da formação de treinadores (1)
e também dos diferentes treinadores que chegaram aos campeonatos Ingleses (2).
(1) – nos cursos que fiz, a ideia base é que os jogadores sejam mais livres e
mais responsáveis por tomarem decisão em contexto de jogo. Os exercícios de
treino focam-se mais em simular situações de jogo e deixar os jovens escolher
como jogar e como resolver problemas em vez de treinarem apenas e só as ideias
da equipa técnica. (2) – A multiculturalidade chegou aos treinadores e alguns
deles marcaram a forma de jogar e organizar tacticamente e estruturalmente as
equipas como Klopp ou Guradiola. Outros tentando “imitar” estes exemplos levam
a que muitos dos jogadores se tentem adaptar a estes princípios de jogo e
acabem por criar esta nova geração de médios criativos que parece estar a
trazer bons resultados para o futebol Inglês e para as suas equipas nas
diferentes ligas.