quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Entre-Linhas com Pedro Teles

 

De regresso com as nossas conversas, “visitamos” desta vez a Inglaterra, e o scout Pedro Teles. Conhecemos o Pedro através das redes sociais onde lhe pedimos para ele partilhar um pouco daquilo que é o Futebol onde tudo começou, tocando em variadíssimos pontos que achamos de interesse.

O Pedro tem 32 anos, é natural da Guarda e conta com formação base na área da saúde. Tem o sonho de se tornar scout no futebol profissional e tendo focado grande parte do seu tempo livre em estudar e analisar o jogo de futebol e os seus intervenientes.

Trabalhou com o Mansfield Town da League 2 e além disso tem tido mais trabalho com empresas de recrutamento e consultadoria de agentes em Inglaterra e Dinamarca, mas nada profissional.

Começou por se focar em scouting colectivo - do "próximo adversário" mas ultimamente tem tido um grande prazer em trabalhar na área da identificação de talento.

1.    Em primeiro lugar há algo de superior que queremos muito entender que nos causa alguma confusão: os Quadros Competitivos ingleses. Podes-nos falar sobre eles e explicar-nos a diferença em relação aos os nossos?

 Em geral, a maior diferença dos quadros competitivos passa pelo maior numero de escalões profissionais. O futebol profissional vai desde a Premier League – Championship – League One e League Two e depois existe a National League e a National League Conference Norte e Sul que são as 5ª e 6ª divisões mas já semi profissionais. Abaixo dessas ainda existem a Isthmian League e a Isthmian “Regional” mas já são de futebol amador. E por fim cada região tem as suas taças locais e regionais. O investimento e a dimensão dos clubes, comparativamente às ligas portuguesas é incrível.

Depois o futebol jovem tem a Premier League 2 – Sub 23 e a Premier League Sub 21, além dos campeonatos Junior, Juvenis, etc. A EFL ainda organiza a Taça e Taça da Liga e depois há torneios como a Vase Cup ou EFL Trophy onde jogam equipas de Sub 21 com equipas da League 1 e 2. Em geral à uma grande variedade de competições e uma exposição ao futebol profissional maior para as equipas e jogadores mais jovens. Não sei se respondi à vossa pergunta!!

 

2.    E nos escalões mais baixos e de iniciação. Também é uma estrutura idêntica a Portugal, com as competições fundamentalmente regionais? 

Sim. Do meu conhecimento qualquer pequena associação ou colectividade ficam registadas na Federação e ganham o estatuto de Charter Standard Club e ficam habilitados a jogar desde que cumpram certos requisitos. As competições estão organizadas essencialmente a nível local e regional e com selecções regionais de todos os escalões também. 

 

3.    Sobre os mais novos… Qual a tua opinião sobre a equipa de elite dos Sub5 do Manchester City? Não se estará a exagerar com o grau de exigência? Não estará a Inglaterra a tentar ser “profissional” de mais?

Creio que não. A ideia base é fomentar o “divertimento” em futebol e não criar a ideia de estrutura profissional, contudo simular esse ambiente em torno dos jovens: equipamentos, tecnologia, treino e treinadores competentes. Esse jovens são permitidos a jogar em outros clubes e na escola, etc, mas simultaneamente serem expostos a uma estrutura profissional. Outro dos aspectos mais importantes é a educação dos pais/ educadores em torno dos jogadores. Veremos quais os resultados destes métodos nos próximos anos.

4.    Já sobre os escalões mais velhos de formação… Nas tais competições da FA que falaste, em que equipas de Sub21 de clubes da Premier competem com clubes da League 1 e League 2 temos visto que essas equipas Sub21 são muitas vezes limitadas a nível individual e colectivo... Fará sentido os clubes terem estas equipas se não as valorizam?

Tal como em Portugal existem equipas juniores, B, Sub 23. Creio que faz sentido manter estas equipas uma vez que há espaço para todos evoluírem de uma forma e ritmos diferentes. Há jovens de 16 anos nas equipas séniores e outros com 20, 23 que mostram dificuldades em apresentar-se a um nível mais elevado. Estas diferentes competições permitem aos clubes manter os seus talentos e faze-los desenvolver conforme o seu nível individual. Contudo há dois aspectos com os quais não concordo:

- Equipas que têm dezenas de jogadores e mante-los em equipas de desenvolvimento ou empréstimos constantes (Chelsea, Arsenal) sem nunca os apoiar na direcção do plantel principal;

- Apesar de compreender a necessidade de unificar a estrutura de treino do clube para preparar os jovens para a realidade da equipa sénior, raramente existe uma estrutura no clube (conforme existe no Barcelona) e estas equipas acabam por ser formatadas para irem de encontro ao que o treinador principal pretende e tudo volta praticamente ao zero assim que há mudanças na equipa técnica.

Vi recentemente um jogo de Sub-23 entre um clube da Premier League e da Bundesliga e a diferença é gritante, entre o formatar os jogadores para o futebol sénior do momento actual da equipa e o foco no desenvolvimento do jovem jogador e dos princípios de jogo.

 

5.    Passando para o Treino na Formação, um estudo recente da Barça Innovation Hub indicou algumas diferenças metodológicas Inglaterra e Portugal. Nomeadamente no que diz respeito aos exercícios que recrutam a tomada de decisão de uma forma passiva (mais em Inglaterra), ou activa (mais em Portugal). O Treino na Formação é assim tão diferente entre os dois países?

Não tenho conhecimento da realidade de treino em Portugal, mas pela minha curta experiencia de treino aqui, julgo que há verdadeiramente uma cultura de decisão passiva e limitação de desenvolvimento dos jogadores em formação. Infelizmente ainda há muitos treinadores que baseiam as suas sessões em treinos de repetição e drills para colocar o jogador em situações de desenvolvimento técnico contudo bastante longe da realidade competitiva. Retiram toda a imaginação e capacidade de decisão e de jogo em contexto real, colocando os jovens a rematar a baliza ou a fintar barreiras sem os incluir na tomada de decisão para alem da direcção do remate ou do drible.

 

6.    Em Portugal, a Federação Portuguesa de Futebol está a começar a implementar o Processo de Certificação de Entidades Formadoras de Futebol. Em Inglaterra algo de parecido já funciona há alguns anos com as chamadas “Categorias”, certo!?

 

Sim, a FA “obrigou” os clubes que estão patenteados na federação a ter os seus treinadores todos certificados pela federação e os clubes têm certificados de entidades formadoras e pessoal especifico que trabalha na área do desenvolvimento pessoal e criam formação dentro dos clubes para manter todo o staff técnico actualizado. Além disso a FA criou o Elite Player’s Perfromance Plan (EPPP) para criar standards e categorias de academia (Sub 9 até Sub 23). E as academias são categorizadas entre nível 1 e 4 (melhor para menos bom) dependendo das infra-estruturas, do investimento dos clubes, da formação dada aos jovens e apoio técnico do clube, etc.

 

7.    Há tempos lemos um artigo onde falava na quantidade absurda de jogadores oriundos da zona de Londres que jogam ao mais alto nível europeu. O que faz deste nicho ecológico ser uma das regiões do Mundo com maior número de craques por metro quadrado?

 

Não tenho noção exacta dos dados mas certamente que há imenso talento a nascer na região de Londres. É uma área gigantesca, com imensos clubes de futebol e muitos deles com academias de qualidade e redes de recrutamento de muito bom nível. Dependendo no nível da tua academia, podes ser autorizado a contratar jogadores jovens numa rede geográfica maior e trazer o melhor talento para Londres. Além disso é como transferir para a realidade portuguesa, a dimensão de lisboa e toda a margem sul e região urbana. Há clubes em cada esquina, olheiros, centros de treino e então há identificação de talento muito maior. Além disso há uma enorme multiculturalidade e paixão pelo futebol, então muitos dos clubes com maior capacidade, desenvolvem programas na comunidade e têm treinadores nas escolas e em bairros a desenvolver jovens dentro do futebol o que leva a que surjam mais jovens talentosos nessa zona. E pelo que tenho encontrado em conversas, há também muitos treinadores experientes ou consultores/ agentes que criam centros de formação/ academias que funcionam como fábricas de jogadores e que preparam jovens para trials em clubes maiores quando estiverem dentro da idade para assinarem contratos profissionais. Há mais olheiros, mais agentes, mais futebol. Tudo isto leva a que haja mais probabilidade de encontrar talento do que em zonas mais pequenas. O Norte – Manchester, Liverpool, Birmingham são excelentes centros também.

 

8.    Vários jogadores portugueses contam com formação inglesa no seu currículo: Ruben Lameiras (Famalicão), Fábio Abreu (Al-Batin), Ronaldo Vieira (Hellas Verona), Leonardo Lopes (Cercle Brugge), Tiago Augusto (Sporting Sub19) são alguns exemplos de jogadores que passaram pelo contexto formativo inglês, e que embora não fossem muito mediáticos, alcançaram níveis competitivos interessantes...  Há outros exemplos de jovens jogadores portugueses que podem vir a chegar a um bom patamar nas próximas épocas?

 

Sem dúvida. O futebol português e acima de tudo a formação, são bastante reconhecidos aqui em Inglaterra. O mediatismo dos trabalhos do Nuno Espirito Santo, do José Gomes no Reading, Carvalhal no Sheffield, trouxeram muita atenção à qualidade do treino em Portugal. Depois todos os jogadores que referiram e os jogadores mais velhos como o Lucas João e a equipa do Wolverhampton levaram a que o jogador português e a aposta no jovem português faça sentido pelo nível de maturidade e qualidade que temos. O Domingos Quina fez a formação quase toda em clubes da Premier League e está agora no Watford, Gonçalo Cardoso está no West Ham, João Virginia do Everton e o Fábio Silva e o Vitinha são outros exemplos de jogadores que estão a terminar a sua formação por aqui.

 

9.    É interessante que alguns deles até passaram por equipas mais humildes… o que nos leva a inferir que em Inglaterra, na dualidade Treino/Competição, é muito mais a vertente a competitiva que provoca um maior desenvolvimento dos jovens jogadores, do que a qualidade do processo competitivo... Estaremos certos!?

 

Sim. É um pouco difícil compreender essa situação. É mais uma questão clube a clube. De uma forma geral, como referi noutra questão, os jogadores são expostos a uma vertente competitiva muito maior. Há jovens de 17/18 anos com presenças regulares nas League 1 e até no Championship – ligas profissionais e bastante competitivas (uns por aposta na formação, outros por necessidades financeiras). Mesmo equipas de topo, por vezes utilizam bastantes jogadores Sub 20 em jogos de taça, sem qualquer problema. E há sempre a EFL Trophy onde jogam Sub 21 contra equipas seniores. Além disso os clubes apostam de forma diferente nas suas academias e há clubes da League 2 com academias de categoria 2, ao nível ou melhor que clubes da Premier League. Por outro lado, muitos clubes, principalmente os de topo, têm exigências competitivas maiores e muitas vezes focam-se nos títulos e não no processo de desenvolvimento e há imensos jogadores que vão saindo das academias apesar de serem muito talentosos e acabam a jogar em outros ligas ou países.

 

10. Será devido a essa grande competitividade que conhecemos tantos exemplos de jogadores ingleses que vieram ou passaram pelo "fundo" em Inglaterra, como Vardy ou Mings? Em Portugal isso é quase impossível…

Julgo que estes casos tem uma explicação simples. Por um lado ha um mercado interno muito forte e uma grande aceitação de meritocracia: Independentemente da idade ou do currículo, se és o melhor marcador da quarta divisão ou um jogador que mostra um conjunto de qualidades pouco comuns, alguém vai analisar o jogador em todas as suas vertentes e tentar promove-lo a um escalão superior ou a uma equipa melhor. Alem disso, apesar das evidentes diferenças entre divisões, há sempre um grande nível de competitividade e intensidade o que faz com que para muitos jogadores, a transferência de competências entre ligas seja muito fácil. Em Portugal isso não parece acontecer e só mais recentemente jogadores do CP tem sido contratados para a Liga 2 e até para a Primeira Liga.

Penso também que a forte cultura futebolística, do amor ao clube local e do investimento no futebol semi profissional alicerça este desenvolvimento. Vários departamentos de scouting começam a expandir-se em pequenas unidades regionais e assim fica mais fácil encontrar alguns destes casos de grandes jogadores em clubes de menor dimensão. Mas nem todos são Vardys e Mings e há muito a  melhorar para que mais jovem continuem em busca da sua oportunidade e de continuarem a sua carreira no futebol.

 

11. Ainda sobre a particularidade dos jogadores ingleses nos oferecem… Muito se tem lamentado no Futebol mundial o desaparecimento de jogadores da posição 10. Contrariando por completo essa "verdade absoluta" é talvez a Inglaterra o país que mais jogadores desse perfil tem no alto nível. Alli, Mount, Maddison, até mesmo Grealish poderá desempenhar essas funções... A Inglaterra não é propriamente conhecida por ser uma fonte de criatividade futebolística, certo?

 

O menor numero de jogadores “10” parece ser um problema global e a Inglaterra nunca foi nem um mercado produtor de grandes talentos, nem “produtor” de jogadores propriamente criativos e tecnicamente perfeitos (com excepções claro). Os ultimos 5-10 anos tem mostrado uma realidade diferente, com a Inglaterra a conquistar titulos no futebol de formação e não só a colocar jovens talentos em grandes ligas, como a utilizar algum desse talento no mercado interno (por opção ou por necessidade financeira). O surgimento de um grande numero de jogadores mais criativos, tem a meu ver, base na mudança de trabalho feita pela FA nos últimos anos ao nível da formação de treinadores (1) e também dos diferentes treinadores que chegaram aos campeonatos Ingleses (2). (1) – nos cursos que fiz, a ideia base é que os jogadores sejam mais livres e mais responsáveis por tomarem decisão em contexto de jogo. Os exercícios de treino focam-se mais em simular situações de jogo e deixar os jovens escolher como jogar e como resolver problemas em vez de treinarem apenas e só as ideias da equipa técnica. (2) – A multiculturalidade chegou aos treinadores e alguns deles marcaram a forma de jogar e organizar tacticamente e estruturalmente as equipas como Klopp ou Guradiola. Outros tentando “imitar” estes exemplos levam a que muitos dos jogadores se tentem adaptar a estes princípios de jogo e acabem por criar esta nova geração de médios criativos que parece estar a trazer bons resultados para o futebol Inglês e para as suas equipas nas diferentes ligas.

 

 

 

 

 

 

 

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