sexta-feira, 13 de maio de 2016

O Conto de Fadas do Leicester City - do Recrutamento à Crioterapia



Contra todas as expectativas, o Leicester City foi campeão! Por aqui, não somos muito crentes em acasos, por isso fomos tentar saber um pouco mais sobre este “conto-de-fadas” que são os Foxes…





Modelo de Jogo

Para entendermos melhor o sucesso desta equipa dentro de campo, é importante esclarecer e caracterizar o jogar deste Leicester. Equipa balizada por princípios de jogo assentes numa rígida e disciplinada organização defensiva, bastante pressionante e agressiva que tenta aproveitar através de rápidas transições ofensivas qualquer espaço desnecessariamente criado pelo seu adversário.
Com uma sobrevalorização da dimensão física, o Leicester procurou apresentar sempre uma intensidade e velocidade muito altas no seu processo ofensivo, caracterizado como foi dito acima por contra-ataques.
Com uma eficácia e eficiência brutal, estes princípios foram extraordinariamente exponenciados pelos seus belos jogadores, conseguindo, segundo dados da Opta, serem a equipa que mais contra-ataques realizou, e também a equipa com mais golos marcados por contra-ataque que qualquer outra.
Não é um acaso que Jamie Vardy - o jogador dos contos-de-fadas que é esta equipa de conto-de-fadas - tenha sido o jogador mais rápido da Premier League, ao atingir os 35.44 km/h com uma média de 500 sprints por jogo.


Metodologia de Treino

Das várias áreas de trabalho que se têm destacado no Leicester, a metodologia de treino não tem sido a das mais abordadas. Contudo, e tendo em conta que os Foxes alcançaram a glória com uma organização (defensiva, claro) tão eficaz e com uma intensidade tão elevada, sem com isso mostrar um número significativo de lesões, os métodos de treino de Ranieri e companhia deveriam ser mais e melhor valorizados.
Em entrevista ao “Corrieri della Sera”, Ranieri expõe algum do seu trabalho diário no clube.
“Eu acredito no treino, e pode parecer uma heresia em Itália, mas acho que é tudo relativo.”
“Os meus jogadores estão a treinar muito, mas não muitas vezes na semana. Na Inglaterra, o jogo é sempre de alta intensidade e desgasta os atletas. Eles precisam de mais tempo para se recuperar. Nós jogamos no sábado e o domingo é de folga. A segunda-feira é de treino leve. Na terça, é treino pesado e, na quarta, descanso total. Na quinta, outro treino pesado, enquanto a sexta é preparação para o jogo de sábado”.
“Faço questão que os jogadores tenham, pelo menos, dois dias de folga na semana. Esse é o pacto que eu fiz com o plantel no primeiro dia: eu confio em ti. Eu explico algumas ideias sobre futebol uma vez ou outra, contando que tu me dês tudo o que tens”.
“Quando eles treinam, eles colocam a mesma intensidade quando jogam uma partida. Eu nunca precisei dar bronca em ninguém por ser preguiçoso”.
“O treino físico não é importante em Inglaterra, já que eles treino com uma intensidade tão grande e são competitivos até quando têm de fazer um sprint. Os próprios jogos são muito exigentes. Os jogadores têm de recuperar primeiro, e treinar depois.”
Para entendermos ainda melhor o treino dos Foxes, e continuando a pegar no que é a Premier League, e sobretudo o que é o jogar do Leicester, é importante valorizar o trabalho diário da sua equipa técnica, especificamente no que reporta à melhoria da performance motora com o devido acautelamento do aparecimento de lesões.
Existe uma preocupação extrema nos técnicos do Leicester para que os seus jogadores sejam capazes de realizar sprints de uma forma regular sem que os seus corpos sofram com esse comportamento. Por isso, o foco do “treino físico” é desenvolvimento dos níveis de força nos músculos isquiotibiais  com a utilização de uma prensa feita à medida com pesos entre os 350-500kg; e a utilização do equipamento NordBord que permite melhoria e monitorização da força dos isquiotibiais, mesmo em exercícios pós-jogo.
No final da semana, e próximos do dia de jogo, os jogadores fazem exercícios de sprint, a fim de expô-los a velocidades máximas. Matt Reeves, preparador físico da equipa, afirmou num podcast no início desta temporada que: "dados de GPS mostraram-nos que, apesar de jogarmos em áreas maiores para permitir aos jogadores alcançarem velocidades maiores, isso não aconteceu. Um defesa-central pode conseguir fazê-lo, mas fora esse jogador, os outros têm falta de exposição a velocidades máximas.
 Às quintas-feiras, no final do treino, os jogadores são expostos a realizar sprints de 40m, com elevados níveis de fadiga. Este exercício tem como objectivo melhorar a preparação dos jogadores para a prevenção de lesões, já que sem a exposição a esses sprints os jogadores têm um risco maior do aparecimento de lesões nos dias de jogo.
Até sumo de beterraba foi utilizado no processo já que segundo cientistas da Universidade de Exeter, melhora a performance do sprint e a tomada de decisão, mesmo que em “apenas” 3.5%.


Crioterapia

Para além de terem alcançado o título de campeões, o Leicester é também pioneiro na utilização da Crioterapia, no tratamento de lesões. Os Foxes adquiriram uma câmara CryoAction Whole Body Cryotherapy usada para recuperação e reabilitação de jogadores desde a equipa principal até aos mais novos da sua academia.
A câmara foi desenhada para o clube e permite o tratamento de três jogadores de cada vez, chegando a alcançar ciclos de três minutos a temperaturas de 140°C negativos.
A crioterapia funciona pelo arrefecimento da superfície da pele e dos tecidos subjacentes com ar arrefecido usando azoto líquido - um processo supervisionado por pessoal médico. Este processo faz com que haja o estreitamento dos vasos sanguíneos contrariando a inflamação, desencadeando uma resposta biológica do tecido e das células às lesões e danos celulares.
O tratamento pode durar até quatro minutos e é realizado a temperaturas tão baixas como -140°C, para promover a redução do impacto sobre as lesões dos tecidos moles. Na câmara, os jogadores podem ser tratados pelas lesões dos tecidos moles, bem como à fadiga de jogo e de jogo e aos efeitos do cansaço das viagens. Os corpos dos jogadores reagem ao frio extremo com uma reacção natural chamado vasoconstrição.


Plantel

Até à Jornada 36, momento em que alcançaram o título, os Foxes “apenas” apresentaram em campo 23 jogadores.
Com as saídas por empréstimo de Kramaric, Benalouane e Ritchie De Laet, e juntando-se-lhes os nomes dos guarda-redes Mark Schwarzer e Bem Hamer, que até à data ainda não contabilizavam nenhum minuto, eram apenas 22 os jogadores do plantel principal do Leicester – sem contar com as chamadas esporádicas dos Sub21.
Dos 23 jogadores que jogaram apenas 17 fizeram mais do que 180min. Ou seja, muitos não somaram minutos para fazer sequer 2 jogos. Nestas condições o Arsenal, Chelsea e o Man. City tiveram 22 jogadores utilizados, o Man. United teve 25 e o Liverpool 26. É também curioso verificar que o outro outsider do campeonato, o Tottenham, apenas tenha utilizado 18 jogadores que tenham realizado mais de 180min.
Estes valores permitem reflectir sobre diferentes parâmetros da operacionalização do processo de treino e, principalmente, de competição. Onde entram aqui os conceitos de rotatividade, de fadiga ou de dinâmicas?     


Recrutamento

Dos 22 jogadores do plantel principal que finalizaram a época, 7 são novos jogadores, sendo que do XI inicial padrão constaram os nomes dos reforços N’Golo Kanté, Fuchs e Okazaki. Valores que não fogem à norma de outros clubes da Premier League.
No entanto, a diferença entre o departamento de Scouting do Leicester e do dos maiores clubes da Premier League prende-se com a eficácia das suas contratações a tão baixo custo.
O Departamento de Recrutamento é liderado por Steve Walsh, que acumula o cargo de treinador-adjunto de Claudio Ranieri. Embora o nome do scout Ben Wrigglesworth seja dos mais referenciado pelos media e comentadores desportivos, terá sido Steve Walsh o grande responsável pelas contratações de jogadores como Mahrez ou Kanté. Gary Lineker, antiga glória do clube e da selecção inglesa, diz mesmo que o Arsenal contratou “a pessoa errada”, falando no nome de Ben Wrigglesworth, que se transferiu em Fevereiro do Leicester para os Gunners. Recorde-se que Steve Walsh já trabalhou com José Mourinho e André Villas-Boas no Chelsea, na altura responsável pelo scouting de jogadores na Europa.
Para termos uma noção do que foi a valorização dos “activos” do Leicester, e falando dos três jogadores mais valiosos do plantel, temos os seguintes casos, avaliados pelo site Trasnfermarkt: Mahrez de 500 mil € para 20milhões €; Vardy de 1,24 mil € para 12milhões €; e Kanté de 4,5milhões € para 10milhões €. E com uma avaliação feita a 6 de Fevereiro de 2016…
Citando o Dailymail, a metodologia de trabalho do scouting de jogadores é a seguinte:
“Walsh trabalha em estreita colaboração com David Mills, scout-chefe do clube, que recebem informações sobre os jogadores da equipe de scouts do terreno, bem da análise de vídeo a partir do software Wyscout, uma empresa que contém milhares de jogos em todo o mundo. Agentes de confiança ​​também desempenham um papel significativo na recomendação de jogadores que possam corresponder à equipa do Leicester.
Em primeiro lugar, o staff técnico identifica a posição e estilo de jogo desejados, e, em seguida, faz-se uma lista de opções elaborada com base no na possibilidade financeira previsível em qualquer negócio.
Também importante, aliada a todas as chamadas feitas ao longo deste processo é a apreciação das estatísticas; é trabalho de algum responsável alguém triturar de forma forense os números de qualquer jogador. Pense-se nas ocasiões de golo criadas por minutos, distância percorrida e velocidade atingida, bolas recuperadas, além de muitas outras variáveis.
O responsável por muito do bom trabalho nesse sentido foi Rob Mackenzie, chefe do scouting técnico do clube até o Tottenham Hotspur o ter contratado em fevereiro deste ano. Posteriormente o assistente Ben Wrigglesworth foi nomeado para o seu lugar, um papel impressionante para um jovem de apenas 24 anos de idade.”


Estatística

Dos 64 golos marcados pela equipa, que fez do seu ataque o 3 mais concretizador, apenas dois golos foram concretizados fora da área. Quase 1/3 desses golos apareceu na consequência da marcação de bolas paradas com o maior número da prova, 9, no que toca a grandes penalidades concretizadas.
Outro dado estatístico sobre os golos marcados e sofridos pela equipa é o facto de o Leicester ser das equipas que mais marcou e sofreu golos nos últimos 10min das partidas, numa contagem de 13-10, respectivamente.
Apenas por 5 vezes, o Leicester teve mais posse de bola que o seu adversário, sendo que por duas dessas vezes foi contra o WBA – a equipa da Premier League com a pior média deste parâmetro. Com uma média de 46% de posse de bola, o Leicester ficou no 18º lugar desta classificação da Premier League. Os Foxes estão ainda nesse lugar na contabilização dos passes realizados: 11.956. Pior ficam na percentagem de precisão de passe, em que apenas são assertivos em 71% dos passes – 19º lugar.
Relativamente aos duelos, é também interessante constatarmos que o Leicester tem a 3ª melhor percentagem de tackles eficazes, com 44%. Contudo, nos duelos aéreos, a equipa apresenta a pior média da Premier League – 42%.
Sobre a prestação defensiva, e tal como se esperava, os resultados são dos melhores da Premier League: maior quantidade de intercepções (783); 3º melhor resultado nos bloqueios a remates (149); 3º melhor resultado nos alívios (1.152).
Também sobre os erros defensivos, os Foxes foram os que menos erros cometeram no campeonato, onde em apenas 1 dos erros originou 1 golo sofrido.
Por fim, e no que toca à disciplina, os jogadores do Leicester foram dos mais cumpridores. “Apenas” 54 cartões (51 amarelos + 3 vermelhos) comparativamente com o Aston Villa com 77.  


A época foi (é) demasiadamente extensa para que tivesse sido um êxito acidental. No texto anterior tentámos partilhar aquilo que fomos conseguindo absorver do “porquê” do Leicester campeão. Tal como a temporada, também o sucesso é demasiadamente complexo para se tentar explicar de forma linear. Contudo, uma certeza parece existir. A de que Ranieri e companhia foram campeões com enorme justeza. Quer se tenha gostado do seu jogar, ou não…

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