São
várias as referências que nos ajudam a entender melhor a importância que o
Futebol de Rua teve (e ainda tem) na formação técnica e humana do jogador. O
livro “Futebol de Rua, um Beco com Saída - Jogo espontâneo e prática deliberada”
de Júlio Garganta e Hélder Fonseca; e a REPORTV “No princípio era a bola” realizado
e emitido pelo canal desportivo SPORT TV, são excelentes exemplos dessa
valorização da que para nós é a melhor academia do mundo – a Rua!
Embora
habitemos numa zona do país que permita que haja algum Futebol na Rua, nem
todas as crianças que competem de forma formal, praticam a modalidade no seu
dia-a-dia. Assim sendo, com esta reflexão pretendemos partilhar alguns
pressupostos metodológicos que utilizamos no nosso processo de treino, tendo em
conta a “artificialização” do Futebol de Rua.
espaço/tempo livre de treino – Na Rua não há treinadores, posições nem
constrangimentos.
Consideramos
bastante importante que sejam criadas áreas no treino que sejam livres de
qualquer instrução por parte dos treinadores. Assim, os jogadores terão o seu
espaço e tempo livres para experimentar, brincar e fantasiar à sua maneira.
Esta
opção metodológica permite que haja uma auto-organização bastante interessante
do grupo, assemelhando-se ao que se vê na Rua. Aqui, neste espaço, é muito
comum existirem comportamentos mais invulgares como os jogadores de campo
trocarem de funções com os guarda-redes, criarem-se desafios com aprendizagens
novas, surgirem “árbitros”… Auto-escolhas que habitualmente não são
consideradas pelos treinadores.
a não existência de uniformes de treino – Na Rua, qualquer roupa serve para se jogar à bola.
Ao
colocarmos todas as crianças a vestir da mesma forma estamos, de certa maneira,
a criar marcadores visuais muito homogéneos nas mesmas, impedindo o
desenvolvimento da sua neuroplasticidade. Quando o mecanismo visual das
crianças ainda está muito focado na bola, é importante que hajam alguns
elementos que “stressem” positivamente a absorção de informação do envolvimento
e nada melhor do que haver muitas cores e padrões para assimilar.
Além
disso, na nossa opinião, esta opção – muitas vezes ligada à parte financeira do
clube – contribui ainda para que a individualidade de cada jogador não emerja
na equipa. As t-shirts dos clubes/jogadores preferidos são substituídas pela
camisola do patrocinador, fazendo com que se perca a fantasia e a magia dos
ídolos dos mais novos e com isso alguns comportamentos-exemplo não sejam tão
repetidos/praticados como se desejaria.
a presença de sinalizadores dispersos
aleatoriamente nos exercícios –
A Rua está cheia de obstáculos que provocam trajectórias da bola menos
lineares.
Esta
opção de se colocarem sinalizadores aleatoriamente nos espaços de exercício,
pretende simular a existência de obstáculos naturais presentes no Futebol da
Rua. Já que nos pavilhões e nos relvados sintéticos não existem relevos no piso
que possam provocar adaptações neuronais relacionadas com o controlo da
aleatoriedade da trajectória da bola, os sinalizadores poderão ajudar a
desenvolver essa capacidade.
trabalho de casa – Na Rua pode-se jogar todos os dias. Nos clubes só se
pode jogar na hora dos treinos.
Ao
promovermos a realização de “trabalhos de casa” – em especial em processos de
treino restringidos a dois treinos semanais – estamos, indirectamente a convidar
as crianças a aumentem a sua quantidade da prática do Jogo. No fundo, tentamos
acrescentar um treino extra-clube ao processo semanal, orientado para espaços
menos artificializados do treino.
o não-uso de coletes – Na Rua não existem coletes. Quando muito jogam os que
têm camisola contra os que não têm.
Em
quase todos os exercícios de confronto e oposição, uma das equipas ou jogador
usa colete. Esta opção, cria de certa forma uma mecânica facilitadora à
interpretação do meio envolvente por parte da criança.
Elas,
ao saberem que os seus adversários são os jogadores que vestem uma cor
diferente da sua, têm uma tarefa simplificada, já que não têm que estar tão
concentrados nem têm que ser tão periféricos na sua análise e interpretação do
ambiente de Jogo.
Assim,
diferentes bolas, com as suas diferentes superfícies, pesos e tamanhos, deverão
ser utilizadas para ajudar a desenvolver as habilidades técnicas dos jogadores.
A sua variabilidade permite à criança adquirir diferentes ajustes neuronais que
provocam um maior controlo sensório-motor na sua relação com a bola.
Também
o piso deverá ser diversificado. É diferente jogar-se no pelado, no relvado ou
no alcatrão. Características como o atrito e a dureza do solo, as tensões
musculares que actuam nos jogadores, os ressaltos do relevo, e até o receio que
poderão provocar nos jogadores com a possibilidade de uma queda no mesmo, são
bastante diferentes de piso para piso. É verdade que não é muito prático em
termos de infra-estruturas treinar-se constantemente em diferentes pisos.
Contudo, muitos complexos permitem que isso aconteça e os clubes e treinadores
continuam a renegar os benefícios dessa condição.
ausência de escalões – quando se joga na Rua, não existem os Sub9, Sub11,
Sub13…
Não
devemos nós potenciar no treino esta coexistência etária? Acreditamos que o
contacto (devidamente reflectido pelo treinador) entre crianças mais novas e
mais velhas, cria experiências diferentes sobre os jogadores, estimulando-as a
ajustar os seus comportamentos em função de diferentes tipo de adversário. Fará
sentido realizarmos com as crianças 100 treinos numa época sem se alterar
minimamente o grupo de treino? A nós parece-nos que não.
No
caso dos mais novos eles terão de pensar e fazer mais rápido, lerem e
interpretarem melhor o jogo, serem mais agressivos, determinados e resilientes.
Já os mais velhos terão mais tempo-espaço para experimentarem novos comportamentos
e habilidades, terão oportunidade de ser mais técnicos e menos físicos e poderão
tornar-se mais autoconfiantes na sua abordagem.
realização de jogos condicionados e de
outras “brincadeiras” – Na Rua não há
sinalizadores para contornar, nem “passa, tabela e vai”.
Quando
se joga Futebol na Rua há o 1x2, o 2x2, o 2x3, o 3x3, o 4x5 e por aí em diante.
Há o Jogo segundo determinada forma condicionada em função do número e da
qualidade dos jogadores disponíveis. Não se contornam cones, nem se fazem
exercícios analíticos de passe e recepção.
Para
além das formas condicionadas existem anda outras brincadeiras muito
enriquecedoras do ponto de vista da aprendizagem de determinadas habilidades e
princípios. Na nossa região temos:
Jogo
do Alemão – onde um jogador vai à baliza e todos os outros, em cooperação,
tentam marcar golo depois após um remate precedido de uma bola aérea – tem de
existir um remate de primeira sem que a bola contacte o solo antes do remate.
Jogo
da Maria – em que um jogador tem a bola e todos os outros lha tentam tirar,
utilizando para isso uns níveis de agressividade bem mais toleráveis que os
níveis aceites pelas regras do Jogo.
Jogo
do Vira – forma condicionada de jogo para quando apenas existe um guarda-redes.
Ou seja, trata-se de uma forma jogada de 1x1, 2x2, 3x3, etc. em que ambas as
equipas atacam e defendem apenas uma baliza, alternando-se o guarda-redes
conforme o número de golos delimitado.
rotatividade do guarda-redes – Quando se joga na Rua, nem sempre há guarda-redes.
Julgamos
interessante promover nalguns períodos do treino uma rotatividade relativa a
esta posição específica. Somos a favor de uma experimentação de diferentes
posições em campo, que permitam à criança terem diferentes estímulos inerentes
à diferente zona do campo que ocupam.
Mais
ainda para o caso particular do guarda-redes. É nossa intenção criar algum
stress positivo junto das crianças que lhes façam ter mais bravura, uma
interpretação diferente do jogo e, sobretudo, lhes ensinem a lidar com o
insucesso da incompetência de jogar numa posição tão díspar da que estão
habituados.
Além
disso, em meios mais pequenos, poderá ser uma boa oportunidade de “descobrir”
novos guarda-redes.
Com
esta partilha tentámos mostrar a nossa visão sobre esta problemática do Futebol
de Rua. Aguardamos que o debate surja e que diferentes formas de estar perante
este “flagelo” sejam também partilhadas…
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