quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Artificialização do Futebol de Rua - Uma metodologia para trazer a Rua para a Academia

São várias as referências que nos ajudam a entender melhor a importância que o Futebol de Rua teve (e ainda tem) na formação técnica e humana do jogador. O livro “Futebol de Rua, um Beco com Saída - Jogo espontâneo e prática deliberada” de Júlio Garganta e Hélder Fonseca; e a REPORTV “No princípio era a bola” realizado e emitido pelo canal desportivo SPORT TV, são excelentes exemplos dessa valorização da que para nós é a melhor academia do mundo – a Rua!

Embora habitemos numa zona do país que permita que haja algum Futebol na Rua, nem todas as crianças que competem de forma formal, praticam a modalidade no seu dia-a-dia. Assim sendo, com esta reflexão pretendemos partilhar alguns pressupostos metodológicos que utilizamos no nosso processo de treino, tendo em conta a “artificialização” do Futebol de Rua.

espaço/tempo livre de treino – Na Rua não há treinadores, posições nem constrangimentos.
Consideramos bastante importante que sejam criadas áreas no treino que sejam livres de qualquer instrução por parte dos treinadores. Assim, os jogadores terão o seu espaço e tempo livres para experimentar, brincar e fantasiar à sua maneira.
Esta opção metodológica permite que haja uma auto-organização bastante interessante do grupo, assemelhando-se ao que se vê na Rua. Aqui, neste espaço, é muito comum existirem comportamentos mais invulgares como os jogadores de campo trocarem de funções com os guarda-redes, criarem-se desafios com aprendizagens novas, surgirem “árbitros”… Auto-escolhas que habitualmente não são consideradas pelos treinadores.

a não existência de uniformes de treino – Na Rua, qualquer roupa serve para se jogar à bola.
Ao colocarmos todas as crianças a vestir da mesma forma estamos, de certa maneira, a criar marcadores visuais muito homogéneos nas mesmas, impedindo o desenvolvimento da sua neuroplasticidade. Quando o mecanismo visual das crianças ainda está muito focado na bola, é importante que hajam alguns elementos que “stressem” positivamente a absorção de informação do envolvimento e nada melhor do que haver muitas cores e padrões para assimilar.
Além disso, na nossa opinião, esta opção – muitas vezes ligada à parte financeira do clube – contribui ainda para que a individualidade de cada jogador não emerja na equipa. As t-shirts dos clubes/jogadores preferidos são substituídas pela camisola do patrocinador, fazendo com que se perca a fantasia e a magia dos ídolos dos mais novos e com isso alguns comportamentos-exemplo não sejam tão repetidos/praticados como se desejaria.

a presença de sinalizadores dispersos aleatoriamente nos exercícios – A Rua está cheia de obstáculos que provocam trajectórias da bola menos lineares.
Esta opção de se colocarem sinalizadores aleatoriamente nos espaços de exercício, pretende simular a existência de obstáculos naturais presentes no Futebol da Rua. Já que nos pavilhões e nos relvados sintéticos não existem relevos no piso que possam provocar adaptações neuronais relacionadas com o controlo da aleatoriedade da trajectória da bola, os sinalizadores poderão ajudar a desenvolver essa capacidade.

trabalho de casa – Na Rua pode-se jogar todos os dias. Nos clubes só se pode jogar na hora dos treinos.
Ao promovermos a realização de “trabalhos de casa” – em especial em processos de treino restringidos a dois treinos semanais – estamos, indirectamente a convidar as crianças a aumentem a sua quantidade da prática do Jogo. No fundo, tentamos acrescentar um treino extra-clube ao processo semanal, orientado para espaços menos artificializados do treino.

o não-uso de coletes – Na Rua não existem coletes. Quando muito jogam os que têm camisola contra os que não têm.
Em quase todos os exercícios de confronto e oposição, uma das equipas ou jogador usa colete. Esta opção, cria de certa forma uma mecânica facilitadora à interpretação do meio envolvente por parte da criança.
Elas, ao saberem que os seus adversários são os jogadores que vestem uma cor diferente da sua, têm uma tarefa simplificada, já que não têm que estar tão concentrados nem têm que ser tão periféricos na sua análise e interpretação do ambiente de Jogo.

variabilidade do tipo de bola e de piso – Na Rua, qualquer bola e piso servem para se jogar.
Assim, diferentes bolas, com as suas diferentes superfícies, pesos e tamanhos, deverão ser utilizadas para ajudar a desenvolver as habilidades técnicas dos jogadores. A sua variabilidade permite à criança adquirir diferentes ajustes neuronais que provocam um maior controlo sensório-motor na sua relação com a bola.
Também o piso deverá ser diversificado. É diferente jogar-se no pelado, no relvado ou no alcatrão. Características como o atrito e a dureza do solo, as tensões musculares que actuam nos jogadores, os ressaltos do relevo, e até o receio que poderão provocar nos jogadores com a possibilidade de uma queda no mesmo, são bastante diferentes de piso para piso. É verdade que não é muito prático em termos de infra-estruturas treinar-se constantemente em diferentes pisos. Contudo, muitos complexos permitem que isso aconteça e os clubes e treinadores continuam a renegar os benefícios dessa condição.  

ausência de escalões – quando se joga na Rua, não existem os Sub9, Sub11, Sub13…
Não devemos nós potenciar no treino esta coexistência etária? Acreditamos que o contacto (devidamente reflectido pelo treinador) entre crianças mais novas e mais velhas, cria experiências diferentes sobre os jogadores, estimulando-as a ajustar os seus comportamentos em função de diferentes tipo de adversário. Fará sentido realizarmos com as crianças 100 treinos numa época sem se alterar minimamente o grupo de treino? A nós parece-nos que não.
No caso dos mais novos eles terão de pensar e fazer mais rápido, lerem e interpretarem melhor o jogo, serem mais agressivos, determinados e resilientes. Já os mais velhos terão mais tempo-espaço para experimentarem novos comportamentos e habilidades, terão oportunidade de ser mais técnicos e menos físicos e poderão tornar-se mais autoconfiantes na sua abordagem.

realização de jogos condicionados e de outras “brincadeiras” – Na Rua não há sinalizadores para contornar, nem “passa, tabela e vai”.
Quando se joga Futebol na Rua há o 1x2, o 2x2, o 2x3, o 3x3, o 4x5 e por aí em diante. Há o Jogo segundo determinada forma condicionada em função do número e da qualidade dos jogadores disponíveis. Não se contornam cones, nem se fazem exercícios analíticos de passe e recepção.
Para além das formas condicionadas existem anda outras brincadeiras muito enriquecedoras do ponto de vista da aprendizagem de determinadas habilidades e princípios. Na nossa região temos:
Jogo do Alemão – onde um jogador vai à baliza e todos os outros, em cooperação, tentam marcar golo depois após um remate precedido de uma bola aérea – tem de existir um remate de primeira sem que a bola contacte o solo antes do remate.
Jogo da Maria – em que um jogador tem a bola e todos os outros lha tentam tirar, utilizando para isso uns níveis de agressividade bem mais toleráveis que os níveis aceites pelas regras do Jogo.
Jogo do Vira – forma condicionada de jogo para quando apenas existe um guarda-redes. Ou seja, trata-se de uma forma jogada de 1x1, 2x2, 3x3, etc. em que ambas as equipas atacam e defendem apenas uma baliza, alternando-se o guarda-redes conforme o número de golos delimitado.

rotatividade do guarda-redes – Quando se joga na Rua, nem sempre há guarda-redes.
Julgamos interessante promover nalguns períodos do treino uma rotatividade relativa a esta posição específica. Somos a favor de uma experimentação de diferentes posições em campo, que permitam à criança terem diferentes estímulos inerentes à diferente zona do campo que ocupam.
Mais ainda para o caso particular do guarda-redes. É nossa intenção criar algum stress positivo junto das crianças que lhes façam ter mais bravura, uma interpretação diferente do jogo e, sobretudo, lhes ensinem a lidar com o insucesso da incompetência de jogar numa posição tão díspar da que estão habituados.
Além disso, em meios mais pequenos, poderá ser uma boa oportunidade de “descobrir” novos guarda-redes.


Com esta partilha tentámos mostrar a nossa visão sobre esta problemática do Futebol de Rua. Aguardamos que o debate surja e que diferentes formas de estar perante este “flagelo” sejam também partilhadas… 

Sem comentários:

Enviar um comentário