segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Olhares sobre a dimensão Criativa do Passe - com vídeo

Nos últimos anos, muito se tem falado de Criatividade no Futebol. Talvez por assistirmos a um equilíbrio cada vez maior entre as equipas, esperamos que exista algum jogador que tende em desequilibrar e desordenar toda a disciplina táctica que vamos assistindo por os diferentes campeonatos.
São muitos os autores que se têm debruçado sobre o tema. Uma das conceptualizações mais interessantes é a de Rafel Pol, preparador “físico” do FC Barcelona, que define a Criatividade como a capacidade do jogador produzir trabalho que seja original, inesperado, apropriado e eficaz no contexto em que se expressa.
Por aqui, somos bastante apreciadores das diversas manifestações daquilo que é um objecto ou uma performance Criativa. Música, artes plásticas, educação, desporto em geral e Futebol em particular, são fenómenos que nos cativam sempre que existe a exteriorização do processo Criativo, mostrando que ainda há muita coisa por “inventar”.
No caso concreto da expressão Criativa no futebol, reconhecemos a importância que a dimensão colectiva e contextual do Jogo conferem à sua concretização. Assim, consideramos que determinado comportamento individual ou colectivo em jogo só possa ser considerado Criativo quando concretizado de forma eficaz pelo(s) seu(s) interveniente(s).

Neste vídeo, poderemos ver aqueles que são considerados 30 dos melhores passes criativos da história do Futebol. Não deixando ser uma classificação subjectiva ao gosto e análise de cada um, nota-se que a qualidade dos jogadores e das suas acções é extraordinária.



Através da observação e da interpretação que o vídeo nos transmite, verificamos o seguinte:

·      Existe um domínio NeuroMotor extraordinário da parte dos seus intervenientes. Para todos os jogadores-passadores presentes no vídeo, a bola não lhes é nenhum corpo estranho, pelo contrário. Nestes casos, a bola aparece como mais uma parte do seu próprio corpo, ou invocando o Professor Vítor Frade, a bola é-lhes uma “Apêndice Corporal” que eles dominam na perfeição e das mais diversas formas. Enquanto existem jogadores que quando têm a bola sob determinados constrangimentos específicos espácio-temporais olham para ela como um problema, estes jogadores mostram-se bastante à vontade com ela, utilizando-a de forma fluída e natural. Acreditamos por isso que, mais do que valorizar a necessidade da melhoria da literacia NeuroMotora específica do Jogo de Futebol, importa treiná-la e contextualizá-la, fazendo com que se mostre eficaz e eficiente, sobretudo nos momentos de bastante constrangimento espácio-temporal.

·      Em caso algum do vídeo a Criatividade é encarada de forma individual. Em especial por se tratar de uma compilação de passes criativos, verifica-se que os mesmos só são eficazes quando “acompanhados”, pelo menos, por mais do que um jogador (jogador passador/jogador receptor). Nem sequer estariam no vídeo se fossem tratados de outra forma. Ou seja, não é fácil considerar que determinado jogador que executa o passe é criativo se não houver outro jogador que lhe acompanhe o processo criativo e se predisponha a ser o receptor. Para além desta inter-relação específica, existe ainda a interpretação destes jogadores daquilo que é o seu envolvimento e as suas condicionantes. Em especial, o jogador-passador, por ter a bola em seu poder, tem de ter uma capacidade fantástica da leitura de jogo (colegas, adversários, baliza, zona do campo) e de processamento de toda a informação que lhe permita a decisão-acção.

·      No quotidiano a expressão “pensar fora da caixa” é muitas vezes conectada ao processo criativo. Contudo, quando um jogador “pensa fora da caixa” no processo de treino de futebol e se põe a “inventar” é muitas vezes repreendido por manifestar esse comportamento (na nossa opinião, qualidade). Acreditamos que grande parte dos passes que vemos no vídeo são bastante difíceis de executar na sua dimensão mais táctico-técnica, e que não estão ao alcance de muitos jogadores. É um risco elevado tentar fazê-los. Mas não deverá o jogador, pelo menos, tentar? Ao olharmos para o vídeo imaginamos os milhares de feedbacks que os treinadores (nós incluídos) tomam junto dos seus jogadores exigindo outra tomada de decisão, 99% dos casos, mais segura e menos arriscada. Contudo, e contra nós falamos que, ao fomentarmos esse tipo de tomada de decisão de abolição do risco não se está a contribuir para o desaparecimento da expressão criativa no futebol?


Quando vivemos numa época onde existe a necessidade de tentarmos culpabilizar tudo e todos, talvez esteja na altura de nós treinadores assumirmos a responsabilidade de não vermos mais vezes momentos como os do vídeo, nas diferentes competições que tomam conta do Futebol. Que esteja presente no treino mais literacia NeuroMotora, mais Especificidade e mais Risco! De certeza que veremos no Jogo mais Criatividade!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Dificuldades na operacionalização da "Descoberta Guiada"

Ao longo do processo de EnsinoAprendizagem do Jogo de Futebol, o treinador utiliza a comunicação, seja ela verbal ou não, como uma importante ferramenta (tirando o lado mecânico à questão) de auxílio ao desenvolvimento do jogar do indivíduo e da equipa.
Acreditamos que a estratégia comunicativa apelidada de “Descoberta Guiada” seja a melhor forma que o treinador utiliza no treino para que o jogador aprenda e/ou desenvolva por si próprio determinados comportamentos individuais e colectivos específicos às ideias superiores da equipa.
O conceito de “Descoberta Guiada” reinterpreta o famoso provérbio chinês que sugere que “quando alguém tem fome, mais do que lhe dar-se o peixe, o importante é ensiná-lo a pescar”.  
Consideramos que, mais de que utilizar uma comunicação emissor-receptor, o treinador deverá interagir com os jogadores durante o treino. Esta relação mais “aberta” permitirá ao treinador saber como é que os jogadores se sentem em determinada  altura do exercício, nomeadamente ao nível do posicionamento, da tomada de decisão, da eficácia da tarefa… Por outro lado, os jogadores ao responderem ao treinador, estão também eles a reflectir sobre o pretendido por este, “descobrindo” aquilo que o treinador pretende para ele e para a equipa.
Contudo, este processo relacional treinador-jogador tem colocado na nossa operacionalização certos problemas com os quais temos encontrado alguma dificuldade em lidar.
O primeiro obstáculo que poderemos abordar é quando em determinado contexto os jogadores não “descobrem” por si próprios aquilo que se pretende. Ou seja, é nosso desejo que haja determinada tomada de decisão, mas isso não acontece porque os jogadores não “atingem” a nossa intenção. Acreditamos que quando isto acontece, poderá existir uma responsabilidade repartida pela falta de eficácia do comportamento:
- por um lado o treinador não está a ser competente na escolha do exercício ou das suas condicionantes por não conseguir retirar aquilo que se pretende;
- por outro, os jogadores podem não ter uma capacidade criativa ou inteligência específica inerente ao jogo para ser eficaz na sua tarefa.
A dificuldade maior da análise deste problema surge quando admitimos que o exercício e/ou as suas condicionantes estão muito bem estruturados assim como a capacidade criativa e a inteligência dos jogadores é elevada. Ao ponto de julgarmos que o exercício em questão é possível de ser operacionalizado continuando, contudo, a falhar… 
A outra grande complicação que temos verifica-se no futebol de iniciação. Nos escalões precoces temos dificuldade em que os jogadores incorporem a utilização da parte interior do pé como parte dominante das suas acções de jogo. Devido às dificuldades NeuroMotoras e coordenativas que os iniciantes apresentam, não é hábito utilizarem essa parte específica do corpo. Contudo, nas suas acções, existe muitas vezes o sucesso sem que eles utilizem essa parte do pé! E quando a usam até têm um resultado bastante pior! Daí termos imensas dificuldades em lidar com esta situação.
Sabemos que as investigações têm indicado que existe interferência negativa na aprendizagem aquando do uso da instrução descritiva. Em especial por se verificar que as instruções verbais não serem suficientemente “ricas” para promover uma adaptação funcional do corpo. Mas até agora ainda não conseguimos encontrar estratégias de treino melhores para que as crianças entendam o benefício da utilização da parte interna do pé em detrimento de outras.  
Em ambas as situações, por erro próprio, o que acontece muitas das vezes da nossa parte para se tentar ultrapassar o problema é optar-se por dirigir um feedback puramente instrutivo sobre o determinado jogador.
Jogador X não “cumpre” – Feedback sobre o Jogador X

Admitimos que essa estratégia não é a mais correcta, mas muitas das vezes, não encontramos alternativa…

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O Olheiro sugere: Cristiano Ferreira!

O Cristiano Ferreira é um médio-centro Sub14 de características ofensivas que joga na equipa de iniciados (ao sábado) e de juvenis (ao domingo) do GD Foz Côa.
É um jogador que temos o privilégio de ter treinado desde os Sub10 até à época passada. Contudo, temos noção que a nossa influência no seu processo de aprendizagem do jogo seja ínfimo comparado ao que a Rua lhe tem deu e tem dado ao longo da vida. Isto porque o Cristiano é daquelas crianças que vem dessa grande academia de formação que é o Futebol de Rua.
Tem a técnica aprimorada, domina o jogo com os dois pés, é extremamente competente a atacar e forte a defender, dominando já muito bem os princípios específicos do jogo, é fortíssimo nas mudanças de direcção, muito assertivo no passe e cada vez melhor na tomada de decisão, é muito concentrado e esforçado, tendo ainda consigo toda a malandragem, as manhas e a rebeldia que o Futebol de Rua oferece às crianças.
Indo para uma observação ainda mais específica, existem alguns comportamentos que nos cativam muito neste miúdo: a sua qualidade a jogar de primeira, tanto no passe como na finalização, o seu domínio de trajectórias na realização do passe, sabendo ele quando é que tem de usar a parte de dentro/fora do pé, quando tem que usar o pé esquerdo ou pé direito e quando tem de jogar rasteiro ou levantar a bola do solo, e a sua criatividade e imprevisibilidade, que lhe permitem ter uma visão/interpretação do jogo muito acima da média para a sua idade.
Mas a característica que mais nos agrada nele é a paixão pelo jogo. A alegria que ele transporta para dentro de campo só por poder estar a fazer aquilo que mais gosta, deixa quem o vê contagiado com o seu estilo de jogo. Está constantemente à procura da bola para poder brincar com ela em campo como brinca com ela na rua. Gosta de fazer “rodriguinhos”, “cuecas”, “vírgulas” e todas essas habilidades, mas (quase) sempre no sentido colectivo, não tendo o hábito de as fazer apenas “por fazer”.
Outra ponto a seu favor é a sua resiliência. Ainda tão novo, e fruto de algumas contrariedades familiares, o Cristiano tem já alguma responsabilidade paternal junto dos seus dois irmãos, o que lhe enaltece ainda mais as suas boas notas escolares.
Mas como ele não é o melhor do mundo, é também importante realçar alguns comportamentos mais negativos da sua forma de jogar.
O Cristiano precisa de trabalhar bastante os seus apoios para o jogo. Sobretudo em processo ofensivo, está muitas vezes de costas para a baliza do adversário.
Também no plano emocional, embora tenha vindo a ganhar alguma estabilidade, ele tem o hábito de ser muito conflituoso e “aziado” quando as coisas não correm como lhe convêm, começando a “disparar” em todas as direcções mesmo quando as falhas são suas. Além disso, tem uma personalidade muito exigente com ele próprio e nem sempre consegue reagir bem às adversidades que o jogo lhe proporciona. Embora seja humilde, por vezes tem um discurso arrogante no balneário, fruto desse temperamento mais volátil.
Outra dificuldade que ele está a encontrar nesta época é a falta de adaptação táctico-física ao futebol de 11. Embora na época transacta, ainda como infantil, tenha realizado uma época inteira no futebol de 11, esta temporada não parece estar tão eficaz em acompanhar as exigências específicas do terreno de jogo. As distâncias maiores do campo de 11 implicam uma intensidade, uma velocidade, e uma resistência específicas que o Cristiano tarda em adaptar-se.

Reconhecemos que a nossa ligação emocional à criança possa estar a distorcer a nossa análise às suas competências como jogador. Mesmo assim, queremos julgar que o Cristiano deva ter uma oportunidade num clube de dimensão nacional, e que a qualidade é real. Se não tivesse a mínima qualidade não estaria na Selecção Sub14 da AF Guarda… 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Pensamentos sobre o Treino orientado para as Capacidades Individuais

Olhamos para o Treino orientado para o Indivíduo como um suplemento de estímulos NeuroMotores sobre o jogador que podem facilitar o processo de melhoria ou mesmo aprendizagem de determinado comportamento táctico-técnico.

Na busca de um entendimento mais profundo sobre uma metodologia de treino específica que enfatiza o treino “mais” individual, já por duas vezes tivemos a oportunidade de estarmos presentes nos “Youth Diplomas” promovidos pelo Coerver Coaching, em Portugal.

Se é verdade que na sua génese o Coerver Coaching era demasiado analítico e descontextualizado, com as “melhorias” que obteve com Hugo Vicente, essa metodologia tornou-se bem mais adequada à complexidade que o jogo admite em si.

Contudo, algumas reflexões de investigadores e/ou cronistas, têm indicado que o processo de aquisição de skills técnicos segundo uma perspectiva mais individual, é fraco e desadequado. Julgamos que essa ideia surge, em especial, quando neste “tipo” de treinos se assiste a um reportório de exercícios onde o jogador está ecologicamente isolado, com o seu foco atencional somente investido nele próprio, nos cones e na bola.

Ou seja, se olharmos para o processo de treino mais individualizado em que o sucesso da tarefa seja o de conduzir bem a bola por entre um conjunto de cones, é natural que a aprendizagem global do jogador se foque apenas e só na sua própria condução. Neste caso, o sucesso da tarefa está completamente desconectado à interpretação que o jogador tem sobre aquilo que o rodeia, não promovendo sobre ele a necessidade de adaptação ao contexto de jogo – neste caso, colegas, adversários, balizas...

Contudo, o processo de treino que se orienta para o desenvolvimento das capacidades individuais não se resume ao jogador contornar meia-dúzia de cones. Ele próprio se pode orientar por princípios, etapas e objectivos que permitem ao jogador enquanto indivíduo ser mais forte quando incorporado no colectivo.

Sobretudo nas idades mais precoces, acreditamos que o processo de treino deva ser focado numa visão mais individualista. Que estimule a criança a desenvolver a sua relação com bola. Que permita à criança ter uma bagagem táctico-técnica em que a bola lhe seja uma solução e não um problema.

A experimentação de comportamentos na relação individual jogador-bola por parte da criança, poderá oferecer-lhe uma estimulação dos padrões motores básicos relacionados como seu drible, passe ou remate, que o jogo formal demora mais a oferecer. Da mesma forma, julgamos que só quando se respeita o mínimo de aleatoriedade que o jogo acolhe e se adopta uma abordagem pedagógica não-linear é que o processo de treino orientado para o indivíduo é eficaz.   

Nem todos os treinadores de formação têm ao ser dispor mini-Cristianos ou mini-Messis. Muitas crianças (e cada vez mais) chegam aos clubes com uma literacia motora extremamente limitada, implicando muitas vezes que se tomem estratégias de treino que se orientem para um fragmentismo indesejado mas infelizmente necessário.

Como poderemos nós ensinar uma criança realizar um passe, se ela nem sequer tem um controlo NeuroMotor sobre o seu corpo que lhe permita diferenciar a parte interna ou externa do pé? Como poderemos nós ensinar a recepção em contexto de jogo se para a criança a recepção consiste em pisar a bola em andamento? Como podemos nós promover uma boa relação com bola à criança, se ela nem sequer lhe acerta quando a quer dominar, passar ou conduzir?

O mesmo se passa em jogadores mais velhos que necessitem de desenvolver/aperfeiçoar determinados comportamentos. Como poderá um avançado desenvolver o seu jogo aéreo se passa uma semana de treinos sem rematar uma vez de cabeça? Como pode um extremo desenvolver o seu 1v1 se passa uma semana de treinos sem ter de encarar os seus adversários dessa maneira? Como podem os médios-centros desenvolver o seu passe longo, se nos treinos são “obrigados” a jogar curto?

Estas nossas dúvidas, tornam-se ainda mais evidentes se admitirmos que o processo de treino de muitos clubes do interior se resume a dois treinos semanais, e onde apenas está presente um treinador.

Julgamos ser imperativo que o processo de treino no futebol seja específico. Que se operacionalize segundo uma visão sistémica dos diferentes momentos de jogo. Que se baseie no modelo de jogo adoptado pelo treiador(es). Mas poderão os jogadores ficar a perder se tiverem uma suplementação prática orientada para o desenvolvimento dos seus próprios atributos táctico-técnicos?


A nossa resposta é não…