
Tivemos
o privilégio de conhecer o João na Faculdade de Desporto da Universidade do
Porto. Aluno aplicado nas disciplinas de Futebol, partilhamos o estágio na
Escola Academia Sporting de Alfena.
Tem
feito o seu percurso em equipas de base de vários clubes a competir nos
Campeonatos Distritais da Associação de Futebol do Porto e, nesta época que
está a findar, teve a seu cargo duas equipas, nos escalões de Sub9 e Sub14.
Nesta
“conversa” poderemos ficar a conhecer melhor aquilo em que este jovem treinador
acredita no que diz respeito a temáticas como a metodologia de treino de
crianças e jovens.
1. Estando tu a trabalhar com escalões etários de Sub9 e de
Sub14, que particularidades da criança/jovem e do próprio jogo devem estar
contempladas no teu processo de treino? Isto porque muitas vezes ouvimos e
lemos que é diferente treinar crianças de adultos mas na prática nem sempre
acontece essa adaptação.
Neste aspeto, creio
que é importante termos em conta duas questões: o jogo é o mesmo,
independentemente da etapa maturacional e nível competitivo, os fundamentos
básicos são os mesmos, mas depois, cada contexto competitivo, seja pelo escalão
etário, seja pelo nível de qualidade dos intervenientes, irá encerrar em si um
conjunto de particularidades que torna qualquer um desses contextos singular.
Assim, e partindo
deste pressuposto, assumo como lógico termos o cuidado de conhecer bem o
contexto no qual estamos a intervir e adaptarmos a nossa intervenção sobre ele,
sem nunca esquecer os fundamentos de base que o jogo aporta.
Atendendo aos
escalões em questão, ambos os casos contemplam particularidades bem distintas,
as quais terão de estar presentes no processo de treino de forma a que este se
encontre adequado e vá de encontro aos objetivos de cada equipa, mas ambos
assentes na essência do jogo e num determinado jogar, que na sua génese pode e
deve ter similaridades.
Referindo-me ao caso
concreto dos sub9, falamos de um contexto em que os atletas ainda estão numa
fase precoce de contacto com o jogo, em que tem de haver uma necessidade de
adaptação ao nível da comunicação e da forma como lhe são passados os conhecimentos
para que vão entendendo o jogo dentro de uma realidade intelectual adequada à
sua idade e desenvolvimento, em que a sua consciência costuma ser muito mais
centrada no eu, mas onde se pretende construir também uma consciência coletiva,
onde haja um processo em que a atuação individual seja de uns em função dos
outros dentro de uma lógica sistémica. Espera-se que os jogadores nestas idades
ainda sejam quase que uma “folha em branco” em que o seu conhecimento do jogo
ainda seja muito mais na base da intuição, de uma forma mais “selvagem” e menos
modelada, mais centrada no individual e, consequentemente, se encontre num
nível de complexidade mais básico. Para além deste aspeto, não podemos esquecer
que nestas idades o modelo competitivo se baseia no jogo de 7x7, que por si só
se manifesta numa complexidade diferente do jogo de 11x11. Neste caso concreto,
da realidade na qual estou inserido, este foi um ano transição do futebol de 5
para o futebol de 7, o que exigiu uma adaptação a um diferente espaço, a um
maior número de relações entre os diferentes jogadores, o que levou os
jogadores a ter de desenvolver uma diferente abordagem ao jogo, e que
condicionou de forma decisiva a construção do processo de treino de maneira a
garantir a sua adaptação a esta nova realidade.
Para além das
questões de âmbito mais metodológico, não podemos descurar os seus interesses e
necessidades enquanto crianças, pelo que julgo ser importante ter sempre
presente ao longo do processo um lado mais lúdico, que estimule a paixão pelo
jogo e pelo treino, que com certeza irá promover uma aprendizagem mais rica e
consolidada.
Se a paixão pelo jogo
deve ser algo sempre presente em qualquer âmbito, julgo que o lado lúdico, a
liberdade de explorar, ser criativo, poder errar, têm de ser fatores bem
vincados nestas idades, para que os jogadores disponham de um ambiente de
desenvolvimento agradável e facilitador do crescimento enquanto crianças e
atletas.
Por seu lado, nos sub
14 deparámo-nos com jogadores com um nível de conhecimento do jogo mais abrangente,
alguns deles com metade dos seus anos de vida já em contexto competitivo, o que
tornou possível uma abordagem mais complexa no seu processo de treino.
Embora neste escalão
possa já haver um domínio de alguns dos princípios básicos do jogo, há a
necessidade de modelar, aperfeiçoar e dotar os jogadores de uma maior
abrangência de conhecimento do jogo e das suas capacidades técnicas,
permitindo-lhes vivências que os dotem de maiores capacidades para o futuro
enquanto futebolistas.
Nesta fase de
desenvolvimento, os jogadores já terão na sua mente algumas ideias
pré-concebidas sobre o jogo, pelo que lhes foi passado anteriormente, por
possíveis sucessos já alcançados, e cabe-nos a nós criar-lhes desafios que os
levem a continuar a explorar e encontrar diferentes formas de solucionar
constrangimentos, e desta forma aumentar a sua abrangência de jogo, tanto a
nível decisional como técnico.
Neste caso, julgo
também ser importante olhar a aspetos
que vão para além dos metodológicos e, mantendo alguma parte mais lúdica, creio
que nestas idades podemos desafiá-los a olhar para o jogo de uma forma a
entendê-lo, mas mantendo o objetivo de desenvolver nos jogadores a paixão pelo
jogo e pelo treino. Procuro que eles comecem a questionar-se pelo que vai
acontecendo no jogo, a pensar sobre ele, no sentido de o entenderem e se
apaixonarem pela sua complexidade, mas mantendo ainda o seu estado mais
essencial, pois todos eles devem estar neste contexto pela paixão ao jogo e com
o foco mais centrado na sua evolução e desenvolvimento das suas capacidades,
deixando um pouco para segundo plano o lado competitivo (defendo que este
esteja presente, e que é um fator promotor de desenvolvimento, mas que não deve
ser ele o elemento central do processo nestas idades).
2. Ruben Jongkind, ex-Ajax, dizia que o escalão Sub14 era o
mais difícil de treinar devido a toda a complexidade maturacional que eles têm.
Conferes estas declarações?
No meu entender,
creio tratar-se de um escalão etário que encerra em si próprio um conjunto de
particularidades que realmente o tornam num desafio complexo e tudo se deve
essencialmente a um fator chave presente nesta etapa, a heterogeneidade.
Neste escalão
deparamo-nos com jogadores que estão em estágios de desenvolvimento físico e
cognitivo por vezes muito díspares, o que leva a que a nossa ação e o
desenvolvimento do processo tenha de ser pensado e construído tendo em conta
estas diferenças. E o desafio é esse, fazer com que o processo seja rico e
adequado para todos, quando podes encontrar na tua equipa jogadores com 7 anos
de competição, que entendem o jogo do ponto de vista individual e coletivo com
algum nível de complexidade, mas também tens jogadores que inciaram a sua
atividade competitiva na corrente época, e que ainda necessitam de adquirir os
fundamentos de base, como adaptar um processo em que tens jogadores que já
atingiram o seu pico de velocidade de crescimento, e outros nos quais sentes
que essa fase ainda estará por vir, e mesmo ao nível da personalidade, em que
tens atletas com um nível de responsabilidade elevado (e aqui refiro-me à sua
forma de encarar o treino e o jogo) e outros para os quais esse ainda não é um
fator tão preponderante.
Não é fácil
conseguires operar um processo de treino em que te deparas com miúdos a competir
entre si, em que podes ter um ou outro com um físico quase de sénior, com 1,80m
e 75kg, e outros que se assemelham a sub 11, com pouco mais de 1,50m e 40kg, e
desenvolveres estratégias para todos eles tirarem o máximo das suas capacidades
e operarem um processo em que qualquer um deles, dentro desta variabilidade, se
mantenha envolvido numa ideia global comum e que vá conduzir a um crescimento
sustentado e efetivo onde vigore a equidade de oportunidades.
Assim sendo, torna-se
complexo trabalhar uma articulação de uma linha defensiva em que tens jogadores
que podem ainda não ter consciência de quando realizar pressão ou contenção e
outros colegas de setor que já dominem os fundamentos que lhe permitem jogar
com a regra do fora-de-jogo, por exemplo. Aqui, há o desafio de desenvolver
estratégias que permitam a todos eles cresecerem dentro do seu nível de jogo,
sem que uns saiam desfavorecidos em relação a outros, sem perder de vista o
evoluir da equipa no seu lado coletivo.
Atendendo a estes
factores, concordo com esta visão de Ruben Jongkind, atestando que o trabalho
com este escalão é de uma elevada complexidade, uma vez que é necessária uma
articulação de diversos factores de maneira a conseguir transformar essa
heterogeneidade numa convergência que nos leve a um processo de treino capaz de
se adaptar a todos e promotor do desenvolvimento de todos os jogadores num
contexto de equidade, e de um jogar de qualidade que permita a evolução de
todos individual e coletivamente.
3. Sobretudo com os mais novos deves ter que adaptar a tua
comunicação. Podes dar alguns exemplos de como adaptas a tua linguagem
futebolística a crianças com 7, 8 e 9 anos de idade?
Nestas idades procuro
que tudo o que lhes transmito na minha comunicação seja o menos abstrato possível.
Assim, recorro muitas vezes ao vídeo para que eles percebam a informação que eu
pretendo passar mas, sobretudo, utilizo várias analogias que lhes possibilite
associar os comportamentos que se pretendem com situações que para eles são
claras e objetivas.
Por exemplo, para que
entendam o conceito de retirar espaço ao portador da bola, utilizo a analogia a
uma lanterna: “imaginem que o jogador que tem a bola tem uma lanterna, e que a
sua luz se vai espalhando. Se nos colocamos longe da lanterna, ela vai
continuar a espalhar-se e iluminar muito espaço. Por outro lado, se nos
colocamos junto à lanterna, tapamos a luz e ela vai deixar de iluminar. Ou
seja, se estamos longe do adversário que tem a bola, ele tem espaço para jogar
com os colegas, se nós estamos junto a ele, ele fica sem espaço para jogar a
bola”. Com esta analogia, eles percebem que têm de “tapar a lanterna”, isto é,
pressionar o portador da bola, reduzindo-lhe o espaço e as suas opções para
jogar.
Utilizo também o
conceito de “guarda-costas”, para que eles percebam melhor a necessidade de
realizar coberturas, o conceito de encontrar “auto-estradas” (caminhos mais
rápidos e sem “obstáculos” para chegar à baliza adversária), ou o pedir para
“procurar buracos” como forma de simplificar a indicação para identificar e
ocupar espaços livres.
No fundo, o
importante é levar a que eles consigam atribuir símbolos que lhes permitiam dar
significados objetivos a conceitos que por si só seriam demasiado abstratos
para o seu entendimento nestas idades. Deste modo, eles vão entender melhor o
que têm de fazer, pois tudo é transmitido numa linguagem familiar para eles,
que os leva não só a perceber o que eu quero dizer, como confere sentido e
lógica aos comportamentos que eles têm de fazer e, acredito eu, lhes permite
entender melhor a lógica do jogo de uma forma mais simples.
4. Tendo uma relação emocional ao Futsal, operacionalizas
algum transfer desta modalidade para o Futebol enquanto treinador, em especial enquanto
treinador de Formação?
Sem dúvida. Iniciei a
minha prática no Futsal, passando depois para o Futebol, e atualmente continuo
a praticar Futsal, pela paixão que tenho pelo jogo. E sempre senti enquanto
praticante que consegui transferir aprendizagens de uma modalidade para a
outra, e que isso me ajudou a ser mais completo, tanto a nível técnico como
decisional.
Pelas suas
particularidades, creio que o Futsal é uma modalidade muito rica para a
aprendizagem de várias capacidades importantes para o jogo de futebol. Pelos
seus condicionalismos a nível de regras, o espaço reduzido, a rapidez do jogo e
o facto de haver um contacto mais frequente com a bola vai permitir um
aprimorar das capacidades técnicas de uma forma mais constante e exigir uma
adaptação mais frequente ao contexto pela velocidade com que este varia, desenvolvendo
um pensamento e tomada de decisão mais rápidos, uma maior mobilidade e
imprevisibilidade de forma a conseguir ganhar tempo e espaço, a necessidade de
estar constantemente preparado para alternar entre processos ofensivos e
defensivos mantendo a equipa equilibrada e a exigência de ser rápido e eficaz
em todos os momentos de jogo para garantir sucesso, e julgo que todos esses
fatores podem e devem ser transferidos para o jogo de Futebol de uma forma
proveitosa.
Deste modo vejo no
Futsal uma modalidade na qual consigo ter características que me permitem
evoluir a nível de capacidade técnica, de velocidade de tomada de decisão e
ocupação/exploração de espaços, pelo que tento retirar desta minha vivência
algo que me permita melhorar o meu processo de treino no Futebol, mais ainda na
formação, em que este tipo de caracterísitcas devem ser permanentemente
estimuladas para que os atletas desenvolvam competências que os permitam ser
melhores tecnicamente e velozes na adaptação ao contexto, ao nível do
pensamento e tomada de decisão.
5. Julgamos que partilhas connosco a ideia dos benefícios do
Futebol de Rua na formação desportiva das crianças. Que estratégias usas no
treino para minimizar os estragos da ausência desta “academia de talentos”? Ou
seja, em termos práticos, como trazes a Rua para o Treino?
Apesar de ter
crescido num meio urbano, as crianças da minha rua juntavam-se nos pátios uns
dos outros a jogar, e isso sempre foi algo que me fascinou, jogar 2 contra 5,
jogar contra mais velhos, mais novos, defendia como guarda-redes o que estava
mais atrás, e procuro ir buscar essas coisas dos tempos de criança e trazer um
pouco disso para o treino. Porque hoje em dias as crianças e jovens não têm
isso, os meus pais moram no mesmo local, e eu vou lá a casa e durante o dia não
se vê um miúdo no pátio a brincar.
Reconhecendo esse
contexto como algo rico para o desenvolvimento de características importantes
para o jogador, como a criatividade, a agilidade, coordenação, melhoria da
técnica individual e, consequentemente, para um enriquecimento do jogar da
equipa, procuro que em grande parte dos exercícios haja sempre espaço para
existir um pouco de rua. E procuro isso de formas muito distintas:
Jogar sem espaços
definidos de campo, números de jogadores diferentes do convencional (equipas
com número de elementos diferentes), ambas as equipas sem coletes, jogos em que
os próprios jogadores é que são os árbitros e definem o assinalar de faltas, se
uma bola sai, a bola é de quem tiver primeiro uma bola para seguir o jogo,deixar
que as equipas assumam a identidade de uma equipa e dos seus jogadores
(determinada equipa é o Barcelona, e um deles é o Messi, outro o Suarez e outro
o Rakitic...), e tendo sempre presente a competição, algo que vejo como sendo
fundamental e que é promotor de um maior empenho dos jogadores nas suas
tarefas. Isto em situações de treino mais convencionais.
Depois há certos
momentos em que procuro mesmo algo mais diferenciado, e aí está dependente dos
recursos que tenho à minha disposição. Recordo-me num clube em que trabalhei,
que havia um espaço por trás de uma bancada, em relva e terra, e que tinha
muros a toda a volta, num formato irregular, mais largo nuns espaços que
noutros, em que formávamos as balizas com camisolas, chuteiras, o que fosse, e
a partir daí organizávamos torneios, sem qualquer tipo de regras a não ser muda
aos 3 e acaba aos 6, por exemplo. E adquiríamos coisas fantásticas, porque vias
comportamentos de alguns miúdos que não eras capaz de ver no campo, a forma
como tentavam adaptar-se ao contexto,como tiravam partido dos graus de
liberdade que este tipo de jogo lhes permite ter.
No fundo, procuro que
haja sempre momentos em que os graus de liberdade sejam maiores, para que eles
explorem o jogo na sua essência, da mesma forma que nós o explorávamos em
criança com o “futebol de rua”.
E dentro do treino
mais convencional de Academia (se é que lhe podemos chamar assim) procuro ter
sempre características nos exercícios que permitam aos jogadores ir buscar algo
da rua, ter essa liberdade de arriscar, procurar coisas diferentes, estimular o
evoluir da destreza motora, pois acredito que tudo isso irá enriquecer o
processo e o crescimento dos jogadores.
6. Qual a tua opinião acerca do “uso” do Futebol como
contexto de desenvolvimento da literacia motora? Ou seja, numa sociedade cada
vez mais sedentária e pouco estimulante do ponto de vista motor, até que ponto
as escolas de Futebol deverão ser usadas como espaço de Educação Física?
De facto, hoje em dia
o estilo de vida de uma criança, tanto com 8/9 anos, ou com 13/14 anos, fazem
com que haja um menor número de estímulos no seu dia-a-dia que lhes permita
desenvolver capacidades coordenativas, de agilidade, e isso é notório na forma
como elas se comportam a nível motor.
No ano passado estive
a lecionar Educação Física em duas escolas primárias inseridas em contextos
sociais bastante distintos, apesar de muito próximas uma da outra: uma em que
os miúdos saíam do portão da escola e estavam dentro do bairro social, em que
se mantinham todos juntos a brincar após o fim das aulas, e outra em que todos
os miúdos iam embora de carro com os pais ou avós, ou na carrinha do ATL. E o
que verificava era que o desenvolvimento motor daquelas crianças era bastante
diferenciado, e muito pelos graus de “liberdade motora” que cada um dos
contextos lhes permitia ter. Desta forma, a sua predisposição para correr,
saltar, coordenar-se era significativamente maior no contexto em que havia um
estilo de vida mais dinâmico. Consigo notar também, que na maioria dos casos,
alunos que estejam envolvidos numa atividade desportiva fora da escola,
normalmente revelam uma maior apetência para a aula de Educação Física. Posto
isto, creio que se torna óbvio concluir que hoje em dia a Educação Física, por
si só, não está a conseguir cumprir o seu desígnio fundamental de tornar os
alunos mais literados a nível motor, muito por causa da falta de exercitação
que as crianças e jovens têm fora do seu horário letivo devido a um estilo cada
vez mais sedentário, e de várias atividades que lhes são muito apelativas
promoverem a ausência de movimento. E tendo por base este pressuposto, torna-se
fundamental pensar nesta questão no processo de treino, pois quanto mais
desenvolvido do ponto de vista motor a criança ou o jovem for, mais preparado
estará para desenvolver o seu jogar.
Deste modo, procuro
contemplar isso nos treinos, e promover contextos de exercitação que apelem ao
desenvolvimento destas capacidades básicas que exigem controlo motor, destreza,
coordenação, velocidade, velocidade de reação, por forma a que estas crianças e
jovens consigam ter um maior domínio do seu corpo que lhes permita realizar com
mais sucesso as tarefas do treino, mas também que lhes possibilite ser pessoas
com níveis de desenvolvimento mais elevado, algo que certamente os irá ajudar a
ter melhor qualidade de vida no futuro.
7. Qual tua opinião acerca das “Posições” na Formação? Temos
lido que muitos jogadores a Top foram “desposicionados” no seu processo
formativo para ganharem outras qualidades através de novas vivenciações…
Acredito que um
jogador consegue ser melhor quanto maior é o seu conhecimento e entendimento do
jogo, e que durante o seu processo formativo irá beneficiar tanto quanto maior
for a variedade de estímulos e desafios que lhe forem colocados ao longo deste
processo.
Sobre este tema,
recordo-me de ouvir recentemente duas histórias que ilustram um pouco isto e
que sustentam a minha ideia sobre este tema:
-Numa entrevista,
VanDijk referiu que um dos segredos para a sua eficácia enquanto defesa central
era a forma como conseguia interpretar e antecipar os comportamentos que os
avançados iriam ter, permitindo-lhe estar melhor posicionado perante eles, ter
uma maior capacidade de desarme, etc. E, segundo ele, tal capacidade foi
adquirida porque durante a sua formação ele jogou durante algum tempo como
ponta de lança, o que lhe permitiu adquirir um entendimento sobre a posição que
lhe possibilita agora ter mais sucesso na posição na qual atualmente é
reconhecido como um dos melhores do mundo.
-Denis Bergkamp, que
tem mantido ligação ao trabalho com escalões de formação, referia que alterava
as posições dos seus jogadores em campo (neste caso concreto que li, referia-se
ao trocar os extremos para o lado contrário ao pé dominante), no sentido de os
obrigar a procurar soluções diferentes, de forma a não formatar o seu jogo e,
deste modo, dotá-los de uma maior variabilidade de recursos que no futuro
permitiriam ao jogador encontrar soluções para um maior número de
constrangimentos que o jogo lhe colocasse.
Pegando nestes dois
testemunhos, acredito que os jogadores ao longo do seu processo formativo devem
ser estimulados a passar por diferentes posições, de forma a conseguir
vivenciar diferentes situações que lhes permitam entender melhor o jogo e
antecipar cenários, e ao mesmo tempo desenvolver uma maior variabilidade
técnica e tática que lhes possibilite aumentar os seus recursos e a capacidade
de encontrar soluções para resolver os problemas com que se deparem.
Apesar disto,
acredito que este tipo de estratégia deve ser feita tendo sempre como premissa
colocar o jogador neste tipo de situações de uma forma controlada, garantindo
que este terá um mínimo de “conforto” que lhe permita encontrar soluções para
fazer face aos constrangimentos que vai enfrentar e possa ter sucesso, pois só
desta forma as vivências irão permitir-lhe uma aprendizagem consolidada.
De uma forma prática,
procuro que nas minhas equipas os jogadores se habituem a que as posições
definidas são apenas um ponto de partida, e que o jogo é algo dinâmico e que
eles devem estar preparados para isso e, assim sendo, quanto maior capacidade
eles tiverem de assumir diferentes posições, mais fácil será de assegurar essa
dinâmica e conferir imprevisibilidade ao nosso jogar, característica que
acredito que deve estar sempre presente para que o processo seja rico e de
qualidade.
Depois, vou
procurando em certos momentos que os jogadores passem por determinadas posições
com o intuito de potenciar capacidades, fazê-los entender certos aspetos do
jogo para os quais eles se calhar até então não estavam tão conscientes, sempre
com o objetivo de que estes aumentem a sua capacidade de resposta aos
constrangimentos do jogo.
Tomando um exemplo
prático: um jogador que jogue como defesa central, vai ter um determinado
padrão de constrangimentos em fase de construção diferente de um pivot ou de um
avançado: a pressão que irá sofrer será proveniente de determinadas zonas, as
suas receções terão de ser orientadas para certos sentidos, as soluções de passe também serão dentro de um
determinado padrão. Assim, se esse jogador passar toda a sua formação nessa
posição, só irá estar sujeito a esse tipo de constrangimentos de uma forma
constante, o que o vai tornar menos preparado em jogo, e com uma menor
abrangência de jogo. No entanto, se em determinadas alturas da formação ele
tiver de jogar a pivot, por exemplo, ele será desafiado a ter de orientar as
suas receções de forma diferente, a decidir por soluções de passe diferentes,
irá receber pressão por qualquer lado, e isso irá fazer com que ele tenha de
desenvolver outras capacidades que o vai tornar mais variável nas suas ações e
com um entendimento de jogo mais vasto.
Embora entenda que se
deva escolher posições para os jogadores que os mantenham confortáveis no jogo,
de forma adaptada às suas capacidades e que lhes permitam exprimir o seu
potencial, será benéfico desafiá-los e colocá-los em alguns momentos em
situação de desconforto que os vai levar a evoluir em determinados aspetos, a
explorar novos recursos e que os vai levar a patamares mais elevados de
crescimento.
8. Tínhamos que tocar na questão do Modelo de Jogo… Será que
há Jogares que são mais ricos do ponto de vista formativo do que outros?
A meu ver, o jogador
forma-se num contexto mais rico se consegue estar mais tempo em contacto com a
bola, com o jogo e contextos que lhe permitam dotar-se de um pensamento mais
complexo e de um maior entendimento do jogo. E isso faz-se jogando, e dentro de
um jogar que seja rico, variável, que permita ao jogador possuir essas vivências
que o vão conduzir a um aporte maior de recursos para adaptar-se e dar resposta
aos contextos com que se vai deparar em jogo.

Sustento isto com o
que li há uns tempos, em que um treinador dizia algo deste género: “Se hoje
treinarmos duas equipas, com jogadores do mesmo nível, e eu orientar um
processo tendo em vista a melhoria do seu entendimento do jogo e tomada de
decisão, e tu orientares a tua equipa de uma forma mais estratégica e centrada
em explorar as debilidades da minha equipa, é mais do que provável que venças o
jogo. No entanto, daqui a 2 ou 3 anos, mantendo esta forma de treinar, tenho a
certeza de que a minha equipa se irá superiorizar à tua, pois conseguiu atingir
um nível de jogo mais elevado.”
E eu acredito muito
nisto, não podemos basear a nossa ação no aqui e agora, e tenho de pensar numa
forma de jogar que permita aos jogadores ter um contexto promotor de um maior e
mais variado número de aprendizagens. E para isso acontecer, tenho de
contemplar no meu processo determinadas caracterísiticas, como a necessidade de ter bola, jogar em função
de determinados espaços e determinados
tempos, em que se crie uma visão sistémica da equipa na qual os jogadores devem
jogar uns com os outros e uns para os outros, de forma a que o todo seja sempre
mais forte que a soma das partes, e que
isso servirá de base para criar um contexto mais facilitador para que todos possam crescer e explorar de forma
mais produtiva o seu potencial.
9. Como contemplas o desenvolvimento da dimensão técnica dos
teus miúdos já numa fase menos infantil? Ou seja, muitos artigos dizem-nos que
os “skills” são adquiridos numa fase mais precoce, mas a verdade é que alguns
miúdos precisam de mais tempo para aprender a fazer uma recepção, um passe longo
ou uma finta…
Acredito que, embora
numa fase precoce a nível de idade haja uma maior predisposição para as
crianças adquirirem certos padrões motores e habilidades técnicas de base,
estas podem ser desenvolvidas e trabalhadas ao longo de toda a vida.
O que eu procuro é
que em qualquer contexto de treino haja sempre espaço para fomentar o
aprimoramento das capacidades técnicas dos jogadores, de forma mais ou menos
vincada, de acordo com o tipo de exercício e de objetivos que tenho para aquele
momento. E que o desenvolvimento dessas capacidades técnicas surja sempre de
uma forma contextualizada com o jogo e, sobretudo, com o jogar que promovemos
para a nossa equipa, pois só dessa forma faz sentido que elas sejam
trabalhadas, pois só com essa contextualização é que elas vão emergir nos
momentos necessários em jogo.
No entanto, nem todos
têm os mesmos graus de destreza motora, e isso deve ser tido em conta, e
cabe-nos a nós ter essa sensibilidade e procurar estratégias que permitam aos
jogadores desenvolver-se tecnicamente de forma a fazer face aos problemas que
vão surgindo. Preferencialmente sem receitas prévias,uma vez que julgo ser mais proveitoso criar-lhes os
problemas e eles, dentro das suas condicionantes, encontrarem recursos técnicos
que lhes permitam solucionar esses problemas com sucesso, porque se não
passamos do ato de formar para o ato de formatar, algo que considero nocivo
para o desenvolvimento do jogador.
Ou seja, eu não estou
à espera que todos eles me dêem a mesma resposta, do ponto de vista técnico, a
um problema que lhes coloco. Espero é criar condições para que eles consigam
encontrar soluções para fazer face a este problema.
O que eu quero com
isto dizer é que não me parece que faça sentido ter uma preocupação excessiva
de que a técnica do passe tem de ser de determinada forma, que a finta para ser
bem feita tem de ser de certa maneira. Ou então nunca teríamos visto um
Quaresma rematar de trivela com a qualidade e eficácia que este apresenta.
Porque aquilo surgiu de uma adaptação ao contexto: mesmo com uma
particularidade motora que este apresentava, que poderia ser vista como uma
limitação (o facto de “meter os pés para dentro”), conseguiu encontrar uma solução
que lhe possibilita solucionar problemas de uma forma muito eficaz.
Porque isto está
dependente do seu padrão motor, e sabemos que nem todos o desenvolvem ao mesmo
ritmo, e também está dependente da contextualização em jogo, e em que também
nem todos eles conseguem adquirir a capacidade de o entender da mesma forma.
Depois, há todo um
trabalho de desenvolvimento das capacidades individuais que pode ser feito, com
diferentes níveis de complexidade, que podem ajudar um jogador a aprender, mas
sobretudo a aprimorar a sua qualidade técnica em diferentes estágios de
desenvolvimento.
Assim, creio que há
espaço para a evolução a nível técnico ao longo de todo o processo e em
qualquer fase, tendo consciência que esta evolução será sempre dependente das
capacidades inatas de cada um, mas que podem ser mais ou menos potencializadas
em virtude dos contextos de aprendizagem com os quais os atletas se deparem ao
longo da sua carreira.
10. Para ti, qual o principal objectivo de um treinador da
formação?
Fazer crescer os
jogadores, torná-los melhores do que eram no momento em que iniciaram o
processo, abarcando o máximo de esferas possíveis: desportivamente, nas suas
relações sociais, valores humanos, tudo o que possa ser tido como formação
integral do atleta enquanto jogador e pessoa, e que possa ser influenciado pela
ação do treinador no processo de ensino-aprendizagem.
Claro que, sendo
treinador de futebol, a maior missão será procurar que o jogador que passa
pelas tuas mãos adquira competências técnicas e intelectuais ligadas ao jogo,
mas também que este desenvolva uma paixão pelo jogo e pelo treino, que certamente
serão fundamentais para o seu desenvolvimento enquanto atleta. Para além disso,
há um conjunto de valores que não deve ser descurado, seja qual for o processo
formativo no qual somos líderes, e que para mim assume uma importância igual às
competências mais específicas da modalidade.
Assim sendo, o que eu
procuro é influenciar os meus jogadores a apaixonarem-se pelo jogo de futebol,
adquirirem um maior conhecimento do mesmo, preparando-os para dar resposta aos
problemas que vão enfrentando no jogo, e dotá-los de valores que lhes possam
ser úteis tanto no seu percurso desportivo, como noutras áreas da sua vida
pessoal.
Sinto que alcancei os
meus objetivos como treinador de formação no desenvolvimento de um processo
quando sinto que os jogadores, após a vivenciação desse processo se manifestam
mais variáveis do seu ponto de vista técnico e decisional, que vão estar
preparados para enfrentar diferentes contextos de jogo, se encontram ligados à
equipa, ao jogo, desenvolveram valores humanos que lhes permitam ter
disciplina, respeito, ambição e que sejam competitivos, numa ótica de querer
ser sempre melhores dia após dia.
No fundo, que após
esse processo, tenham melhorado as suas capacidades no sentido de se
encontrarem mais preparados para um dia estar mais próximos de poder chegar a
um contexto de alto rendimento, se assim for o seu objetivo, mas também que
consigam sair reforçados a nível de valores humanos que esta modalidade lhes
pode conferir e que certamente os ajudará na sua vida futura.
11. Grande parte dos Treinadores que estão na Formação têm as
suas principais referências em treinadores que estão no Futebol Sénior. Tens
ideia de alguém que possa servir como referência ao nível do Futebol de
Formação?
Procuro receber
influência a todos os níveis e de todas as áreas que possam levar a uma
reflexão e desenvolvimento de conhecimento que me permita melhorar o meu
trabalho enquanto treinador.
A minha maior
referência a nível de Futebol no geral, na forma de o refletir e entender é o
professor Vítor Frade, que para mim deverá ser visto como uma referência do
jogo na sua essência, independentemente do nível a que se esteja a falar, seja
Formação ou Futebol Sénior.
Depois, torna-se mais
fácil ter como referência treinadores que operam ao nível Sénior pela
visibilidade que é dada ao seu trabalho, algo que não acontece com tanta
facilidade ao nível do Futebol de Formação.
Não sendo fácil ir
buscar estas referências, mesmo em algumas influências que vou buscar ao
Futebol Sénior, procuro muitas vezes trazer das ideias desses treinadores tudo
aquilo que pode ser transferível para o Futebol de Formação, até porque em vários
casos eles apresentam um passado no qual já trabalharam a esse nível.
Relativamente ao
Futebol de Formação, as minhas primeiras referências são sempre os treinadores
com quem tenho a possibilidade de privar no dia-a-dia, nos clubes pelos quais
vou passando, com mais ou menos experiência, pois acredito que na partilha de
experiências, opiniões e conhecimentos vou conseguindo refletir e adquirir mais
informação que me permite gerar mais conhecimento.
Depois, tenho alguns
treinadores que vejo como referência que, embora nesta fase estejam a trabalhar
a um nível Sénior, já tiveram um percurso no Futebol de Formação e procuro
refletir sobre algumas das ideias que estes manifestaram enquanto trabalhavam
nessa área:
Luís Castro, atual
treinador do Shakhtar, e que durante cerca de dez anos coordenou o departamento
de formação do F.C. Porto, e que sempre me despertou interesse pela visão que
tem do que deve ser o processo formativo de um jogador, de qual o caminho a
traçar para que este tenha um crescimento sustentado e integral que lhe permita
chegar ao futebol de alto rendimento, e que ainda hoje tem isso presente na
equipa que treina e demonstra sensibilidade na forma como procura que os mais
jovens se integrem na sua equipa Sénior.
Pepijn Lijnders, pelo
trabalho que desenvolveu ao nível do desenvolvimento de capacidades individuais
de jogadores no departamento de formação do FC Porto, visível em alguns
jogadores que saíram da formação deste clube, e que agora tenta transportar
para o Liverpool, em que há uma preocupação grande em trabalhar essa vertente
com os jogadores em idade de transição entre a formação e o alto rendimento
(entre os sub19 e os sub23, processo que agora está a cargo de um colega nosso
de ano de curso, Vítor Matos).
Dois treinadores que
no processo de formação sempre demonstraram visões muito centradas no
desenvolvimento do jogador de uma forma integral, com uma preocupação no lado da parte
decisional e de entendimento de jogo, do desenvolvimento da criatividade,
princípios com os quais eu me identifico.
Para além disso, há
equipas que seguem determinadas filosofias em relação ao futebol de formação
com as quais eu me identifico bastante, sendo os dois casos mais flagrantes o
Barcelona e o Ajax: a forma como defendem uma ideia transversal e que lhes
confere uma identidade vincada é uma influência na qual procuro também
sustentar o meu trabalho, adaptando-o às realidades nas quais vou estando
inserido.
Sem comentários:
Enviar um comentário