terça-feira, 18 de outubro de 2016

Porque é que um fenómeno tão global como o Futebol, a prática tem de ser tão específica?


Porque é que um fenómeno tão global como o Futebol, a prática tem de ser tão específica?

Os grandes desportistas, neste caso, os grandes jogadores de futebol, são sobejamente conhecidos, analisados e estudados. Todos sabemos quais são os pontos fortes e fracos dos melhores jogadores do mundo, sendo natural que ocorra neste momento uma mudança de paradigma quanto ao estudo desses jogadores. Mais do que saber como é que os jogadores de top “são tão bons”, pretende-se hoje em dia saber “como é que se tornaram tão bons” (Costa, 2005).

Uma das teorias que se tem debruçado mais sobre o caminho que os expertos percorrem para chegarem aos níveis de rendimento superior, e que é bastante aceite pela comunidade científica, é a Teoria da Prática Deliberada, proposta por Ericsson, Krampe & Tesch-Romer (1993).

A Teoria da Prática Deliberada poderá sucintamente ser explicada pela realização de “actividades designadas, normalmente, pelos professores / treinadores com o único propósito de melhorar o desempenho do indivíduo” (Costa, 2005), onde exercícios são inventados e os atletas minuciosamente monitorizados para que possam ultrapassar as suas fraquezas (Moita, 2008).

Estando o Desporto mais ligado à corrente Ambientalista da formação dos expertos, a Teoria da Prática Deliberada tenta explicar, através dos seus princípios, essa mesma formação. Falamos na corrente ambientalista, já que a prática e o treino, mesmo que não sustentadas por qualquer teoria são necessários à concretização do experto no Desporto. Contudo, a prática por si só, pode não ser condição para se ser talento, pois este ponto gera ainda bastante controvérsia (Costa, 2005).

A Teoria da Prática Deliberada aborda como princípios principais:
· a necessidade do prática ser baseada em permanente esforço e concentração, sem que o prazer esteja necessariamente presente no processo;
· a regra ou lei dos 10 anos ou das 10 000 horas;
· a procura de um processo não só quantitativo mas também qualitativo.

O princípio que se refere ao esforço e à concentração, sem, muitas vezes, prazer, aborda a prática de uma forma permanente, altamente estruturada, onde o objetivo principal é essencialmente a melhoria do desempenho e não o divertimento. Essa noção de sacrifício, é defendida para a potenciação e evolução qualitativa do jogador.

Para esta teoria, o praticar como brincadeira, não leva a que o atleta alcance os níveis desejados de expertise. Da mesma forma que a alta intensidade é exigida ao jogador, também, o repouso e o descanso são necessários à otimização das melhorias biológicas e fisiológicas do jogador. As boas prestações em treino parecem estar relacionadas com níveis altos de concentração daí a inclusão também deste elemento. Contudo, este princípio tem sido contestado nos jogos desportivos coletivos, já que os jogadores têm expressado bastante agradabilidade na realização dos exercícios com maior exigência ao nível do esforço e da concentração. (Costa, 2005) Quanto ao princípio dos 10 anos ou das 10 000 horas está bastante provado nos JDC. Se olharmos para os melhores jogadores do mundo das diferentes modalidades dos jogos desportivos coletivos, vemos que eles precisam de percorrer um longo caminho, as tais 10000hs ou os tais 10 anos, para chegar a um ponto ótimo de rendimento para que eles sejam considerados expertos. A Teoria da Prática Deliberada, vai ainda mais longe no campo da biologia ao referir que, com exceção da altura, todas as diferenças físicas poderão ser explicadas pela prática longa e estruturada em determinado domínio específico. Esta corrente diz-nos ainda que não há provas científicas na área da genética que provem que o gene X predisponha o jogador a ser experto na modalidade X, daí o alto valor da prática (Costa, 2005).

Finalmente, abordando o princípio da qualidade do processo da prática, este é importante quanto à procura da otimização da aprendizagem dos diversos domínios do expertise. Um processo quantitativamente demorado mas que não seja devidamente estruturado nem exija ao jogador o empenhamento devido pode não ser suficiente para o indivíduo atingir o expertise. Daí que cabe ao treinador/monitor, através de uma alternância progressiva de níveis de esforço e concentração, criar condições para que o jogador maximize as adaptações biológicas, cognitivas, emocionais e técnicas, necessárias à sua condição de experto. (Costa, 2005)

Então mas que treino e que treinador?
O Treinador tem um papel crucial no processo de formação do jogador. Desde a sua personalidade, aos seus feedbacks, à sua interação e relação com os jogadores, até à própria operacionalização dos treinos, tudo influencia positiva ou negativamente o percurso de aprendizagem do jogador.

No futebol, são vários os relatos que confirmam esta ideia, mas também o são os casos de sucesso dos jogadores que durante muitos anos jogaram “apenas” na rua, sem frequentarem nenhum tipo de escola, clube ou academia de futebol. Curiosamente, ou não, no chamado “futebol de rua”, o jogador não tem qualquer tido de orientação externa, não possui uma voz ativa e de comando que dirija o processo de aprendizagem. É por isso que acreditamos que um bom treino seja mais importante que um bom treinador.

Contudo, julgamos também que um bom treinador, contribui mais do que atrapalha na formação de um jogador. O problema talvez surja pelo facto de muitos dos treinadores, principalmente dos escalões mais precoces, não saberem lidar com as especificidades e o contexto inerentes às crianças, aplicando métodos, objetivos e exigências, completamente desproporcionais a ela.

Já em relação ao treino, mais do que a quantidade (também importante) parece ser a qualidade aquela que mais contribui para diferenciar um experto e um não experto. Desde logo deverá ser um processo com atividades específicas que contribuam para a aquisição da expertise. Este continua a ser um ponto ainda muito núbio e muito discutido, já que alberga em si um elevado grau de subjetividade sobre o que é específico ou não. Na nossa opinião, um treino específico no futebol de formação, deverá ser aquele que se foque na assimilação de padrões qualitativos elevados no desempenho integrado dos quatro domínios (técnico, emocional, cognitivo, fisiológico), tendo em conta dois elementos essenciais que são: o enquadramento do futebol nos JDC e o facto de se jogar com os pés.

Assim, o treino deverá potenciar o Domínio:

Técnico – através da promoção da adaptabilidade do trem inferior do corpo, a uma funcionalidade que ele não está “programado”, o Futebol. Os pés e as pernas, são basicamente estruturas de suporte do corpo, a evolução da espécie a isso o levou, pedindo o futebol coisas aos pés, que essa mesma evolução, diz para pedirmos às mãos. É por isso necessário, que o ensino potencie ao máximo esta “nova” função que o futebol exige ao corpo, neste caso, aos pés e às pernas. Tal como as pessoas que nascem sem braços conseguem pentear-se, conduzir, cozinhar, pintar, tocar instrumentos, através de uma prática intensa, continuada e precoce nessas ações, também o treino no futebol, precoce e devidamente montado, poderá oferecer ao jogador uma forte capacidade técnica de relação com bola, nos seus diferentes elementos: drible, receção, passe, remate, condução rápida, mudança de direção, finta... é por isso possível estimular o trem inferior na sua componente motora e sensitiva, atribuindo em treino essas novas funcionalidades. (Maciel, 2008) Claro está que as mesmas só fazem sentido se “transferidas” para o jogo, pois os malabarismos pertencem aos circos.

Cognitivo – tendo o treinador a consciência do elevado grau de complexidade que o jogo de futebol confere por ser jogado em constante oposição/cooperação. Essa dualidade deverá ser maximamente explorada, sempre que possível, no treino, favorecendo qualidades como a “leitura” de jogo, a capacidade decisional, a antecipação e a concentração.

Emocional – através de contextos minimamente prazerosos ao jogador, que o façam sentir gosto pela modalidade que pratica, mesmo que esse gosto seja alcançando através de muito esforço e concentração. Estando provado o efeito que a emoção cria na aprendizagem, o treino deverá saber oferecer esse “rebuçado”, de recompensa, mesmo que indireta, pelo esforço da criança e do jovem. Além disso, o sacrifício, a adversidade, a injustiça, sempre que utilizados de uma forma pedagógica poderão ajudar o jogador a tornar-se mentalmente, mas sobretudo “comportamentalmente” mais forte.

Fisiológico – através do conhecimento dos efeitos fisiológicos das diferentes componentes da “carga” de treino (volume, intensidade, duração, frequência, densidade), assim como o devido conhecimento das janelas sensíveis de treinabilidade. Estas janelas estão relacionadas com períodos etários na maturação do indivíduo que permitem uma melhor assimilação e desenvolvimento das capacidades motoras. Nem todas as capacidades motoras coordenativas ou condicionantes, se desenvolvem na mesma altura, sendo por isso necessário ao treinador/professor/monitor estimular a criança ou jovem segundo esse princípio (Neves, 2010).

Referências Bibliográficas

Costa, R. (2005). “O caminho para a expertise” A Prática Deliberada como catalisador do processo de formação dos expertos em futebol. Monografia não publicada, Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, Porto.

Ericsson, K.; Krampe, R. & Tesch-Romer, C. (1993). The role of deliberate practice in the acquisition of expert performance. Psychological Review, 100, 363-406.

Maciel, J. (2008). A (In)(Corpo)r(Acção) Precoce dum jogar de Qualidade como Necessidade (ECO)ANTROPOSOCIALTOTAL – Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal, que “primeiro se estranha e depois se entranha” e... logo, logo, ganha-se!

Moita, M. (2008). Um percurso de sucesso na formação de jovens de Futebol. Estudo realizado no Sporting Clube de Portugal – Academia Sporting/Puma. Monografia não publicada, Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, Porto.


Neves, J. (2010). Caracterização multidimensional de jogadores de futebol com 13-14 anos - Estudo com equipas da Associação de Futebol de Coimbra. Dissertação não publicada, Faculdade de Ciências do Desporto e da Educação Física da Universidade de Coimbra, Coimbra.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Entre-Linhas com Roberto Rivelino

Para este espaço “Entre-Linhas” convidámos o especialista em tudo o que diz respeito aos Guarda-Redes, Roberto Rivelino Silva.
Gestor da plataforma internacional informativa sobre “O Mundo dos Guarda-Redes” e comunicador de formação, aquele que começou por ser um jovem blogger é já uma autêntica enciclopédia sobre tudo o que diz respeito aos números 1. E não só no futebol. 

1.    Comecemos por uma das mais difíceis perguntas que se impõem no que à formação de guarda-redes diz respeito. Como se poderá dizer a um guarda-redes que é baixo que (muito) dificilmente ele terá sucesso enquanto profissional?
R.R.) É um de tantos estereótipos que a sociedade criou à volta do guarda-redes. É claro que é precisa uma certa altura para defender o gigante que fica atrás do guarda-redes, mas para todo o tipo de guarda-redes e humano à especificidades físicas que condicionam ou abonam a favor da posição. Um guarda-redes de 1,85m pode não ter a capacidade de impulsão de um de 1,80m – que já é considerado “baixo” -, ou vice-versa. Penso que não deve haver esse tipo de preconceito.

2.    Passando para o lado do treino, abordamos uma enorme dificuldade que condicionam o desenvolvimento dos guarda-redes em muitos dos clubes amadores. Quando até para a equipa principal é difícil arranjar-se um treinador, como se pode ensinar/treinar um guarda-redes quando se está sozinho nesse processo? Que estratégias deveremos elaborar no treino, nós treinadores, para pudermos potenciá-los?
R.R.) Primeiro de tudo o treinador tem de ter sensibilidade para compreender e abordar o guarda-redes. É uma posição específica e a pessoa que defende a baliza é ainda mais especial por todos os motivos: desde a especificidade do treino individual até à abordagem global na conjuntura da equipa. Os treinadores devem criar espaço no plano de treinos e na aprendizagem individual para dedicar algo aos guarda-redes, no caso da ausência do técnico específico ou da impossibilidade de contratar um. Quem sabe, chegar mais cedo ao treino e dispensar dez minutos com os guarda-redes, por exemplo.

3.    Muitas das equipas amadoras da região tem uma lacuna quantitativa de guarda-redes. Mesmo ao nível sénior. É mais habitual existir apenas um do que três guarda-redes. Contudo quando isso acontece nem sempre é fácil “encaixar” o terceiro guarda-redes. Que papel deverá adoptar esse jogador quando ambas as equipas já têm um guarda-redes? Deverá ser inserido no jogo como jogador de campo, deverá ser convidado a esperar fora do exercício, deverá ter um papel rotativo com outro guarda-redes… convém não se esquecer que o treinador de guarda-redes é um indivíduo quase inexistente na nossa região...
R.R.) No treino deve-se gerir as cargas físicas e a partir daí tentar estabelecer um sistema de rotatividade entre os três guardiões. Se no treino de sexta-feira o titular de domingo já tiver a carga de treino suficiente, pode-se gerir melhor a questão dos três guarda-redes. E há também a questão de um guardião beneficiar mais da integração no jogo e circulação da bola com os pés.


4.    Num processo a dois treinos semanais – número normal na nossa região mesmo em equipas a competir em campeonatos nacionais – sem treinador de guarda-redes, qual a importância de realizarmos um treino complementar para desenvolver os skills específicos dessa posição?
R.R.) Como disse anteriormente, criando um espaço só para os guarda-redes antes do treino. Ou, então, consciencializando o guarda-redes da importância do conhecimento autónomo sobre a posição e o treino, o que por vezes ajuda-os a crescer e a desenvolver com maior prosperidade. É essencial também ter atenção ao tipo de exercício coletivo em que o guarda-redes é inserido, pois por vezes vemos o guarda-redes a fazer exercícios de carga física no treino prévio ao jogo e este pouco abona com isso.

5.    E das outras como defesa-central ou avançado?
R.R.) Recordo uma entrevista do ex-avançado Jorge Cadete em que falava da necessidade de se criar meios para a existência do treinador de avançados e olhamos para equipas de menor nomeada no Brasil e vemos um staff com quase dez elementos, começando no treinador principal até ao psicólogo. Penso que um dia teremos a abertura e as capacidades para a criação de técnicos específicos capazes de rentabilizar jogadores por posição, porque por vezes o treinador principal e o adjunto não têm tempo, disponibilidade ou alcance para isso. Olhando para o Futebol Português imagino o que seria de Hélder Guedes ou de Yazalde se tivessem um acompanhamento mais íntimo de um técnico e veríamos a diferença de aproveitamento por oportunidades de golo que teriam com esse tipo de trabalho.


6.    Existe a esperança que o “Projecto 1” dinamizado por Vítor Baía seja um importante contributo para a nossa “Escola de Guarda-Redes” em Portugal. Será que esse projecto está no caminho certo?
R.R.) A ideia, de partida, já movimentou muito interesse para a posição e só isso já é positivo. A atenção que a sociedade e os Media davam aos guarda-redes há três/quatro anos atrás é completamente diferente da que dão hoje e o Projeto 1 – Escola de Guarda-Redes da Federação Portuguesa de Futebol vem nesse seguimento. A partir daí depende muito da concretização do que é idealizado e da qualidade da mão-de-obra impregnada no projeto. Até agora já se cumpriu alguns dos pontos idealizados, mas ainda há muito a trabalhar e a acrescentar.

7.    Quando se fala de “Escolas de Guarda-Redes”, como se pode caracterizar a Portuguesa?
R.R.) Por potenciação, por rendimento. São inúmeros os casos de guarda-redes que chegam a Portugal com poucas condições e falta de bases técnicas e competitivas e saem do nosso país na plenitude das suas capacidades. Uma vez no estrangeiro, voltam ao ponto em que chegaram cá. E nisso é que o treinador de guarda-redes Português se distingue: em detetar os erros e as lacunas e corrigir ou até “esconde-las.” Penso que Portugal está bem sem qualquer formato ou padrão de guarda-redes ou de treino de guarda-redes, mas beneficiaria de uma creditação e formação para treinadores de guarda-redes.


8.    Se conseguíssemos identificar um padrão, quais os pontos fracos dos guarda-redes portugueses para voltarmos a ver a principal liga portuguesa com mais guarda-redes nacionais?
R.R.) O ponto mais fraco dos guarda-redes Portugueses deverá encontrar-se prioritariamente fora de campo. Há muito talento nas balizas de Portugal, mas há vários interesses que impedem o surgimento de jovens talentos. É de se questionar como guarda-redes como Mário Felgueiras ou Beto Pimparel não tiveram a solidez que lhes devia ser dada em Portugal e quem acaba prejudicado é o próprio Futebol nacional.
Depois, há a questão da pouca formação que é dada ao treinador de guarda-redes Português e isso afeta os guardiões desde a formação ao seniores. Vemos vários jovens chegarem aos escalões principais com passagens nas seleções jovens e depois acabam por não singrar e isso deve-se também, mas não só, à pouca preparação para a competição e situações reais de jogo.


9.    Passando agora para uma análise internacional do momento dos guarda-redes, podemos dizer que com a sua visão diferente do Jogo, Guardiola tem também uma visão diferente para os guarda-redes. Com essa atribuição de novos papéis e tarefas estaremos nós perante uma nova etapa evolutiva para os “redes”?
R.R.) As ideias e conceções de Pep Guardiola revolucionaram a maneira como o guarda-redes é visto e renovou o interesse dado à posição. O que o público-geral e os executantes do Futebol precisam de entender é que a principal do guarda-redes é a defesa da baliza. Só depois se pode pensar no resto. Johan Cruyff tomou riscos ao apostar em Stanley Menzo pelas suas valências no jogo com os pés na década de 80, mas volvidas duas décadas o mesmo não se passou no FC Barcelona: Víctor Valdés era um guarda-redes capaz na defesa da baliza e na construção de jogo e circulação de bola. Os seus erros eram mais decisionais do que técnico-táticos. Quando Guardiola chegou ao FC Bayern implementou as suas ideias em Manuel Neuer e vimos a evolução dessa etapa “finalizada”, mas penso que mais do que admirar e apreciar este tipo de jogo do guarda-redes há que entender que a sua função é defender e só é possível conseguir ser um Manuel Neuer se tiver um bloco e uma equipa coesa que possibilite tamanhos riscos e decisões.

10. Guardiões como Gianluigi Donnarumma e Alban Lafont poderão contrariar a ideia de que os guarda-redes precisam de muita experiência para serem Top. Poderão eles abrir novas portas a outros jovens guarda-redes que precisem agora de menos anos de futebol para se afirmar?
R.R.) A experiência não se traduz nos anos vividos, mas sim na aprendizagem dos momentos vividos. Olhando para Gianluigi Donnarumma vemos um guarda-redes muito jovem mas que passa bastante tranquilidade à equipa. Não é um guarda-redes que arrisca nem se coloca em situações de perigo. Cumpre e sabe passar calma à equipa e beneficiou do caos do AC Milan para rentabilizar a sua imagem e a sua potencialidade. Teve a inteligência emocional para transformar uma situação de grande perigo num benefício para o seu crescimento individual.
Quando dizem que para se ser guarda-redes tem de se ser “louco” ou “maluco” estão completamente errados. É aceder a um estereótipo que tem de cair. A posição de guarda-redes é a que exige mais equilíbrio psicológico e emocional, aliando níveis altos de inteligência para poder decidir. Portanto, penso que a aposta em jovens guarda-redes deve passar por a pesagem destas condições, aliadas à qualidade técnica, e só por isso não vemos mais jovens guarda-redes a surgir.
No caso específico de Alban Lafont, vemos um guarda-redes com graves lacunas técnico-táticas, mas que consegue desempenhar um papel de normal exigência para uma equipa como o Toulouse FC e que cumpre dentro do que lhe é pedido: defesa da baliza. Bem à imagem dos restantes guardiões do campeonato Francês.


11. Sem queremos ter uma postura extremista em prol dos jovens guarda-redes, continuamos a reconhecer qualidade em Gianluigi Buffon e Tim Howard (porque não Hélton?) que provam que com mais de 37 anos ainda se joga a top, mesmo numa posição que exige uma condição física mais traumática…    
R.R.) O segredo passará pela auto-motivação e pela capacidade das pessoas que os rodeiam. Não há idade para a qualidade de um guarda-redes. Vemos como Júlio César evoluiu nos últimos anos em Portugal e pensamos: como será possível um guarda-redes já consagrado desenvolver-se assim, “ainda” com esta idade? A resposta está dentro do seu intelecto. Da plasticidade e das suas qualidades cognitivas.
Quanto aos exemplos dados. Reparamos como Tim Howard acabou por “esquecido” pelo Everton e vai viver tempos de menor pressão nos Estados Unidos, enquanto Gianluigi Buffon é tão gigante que os seus erros nos últimos dez meses são facilmente esquecidos pela sua preponderância e importância para o coletivo. Está cada vez mais um guarda-redes intuitivo nos momentos de decisão, mas continua um dos melhores na resposta às ofensas adversárias e na circulação de bola e, claro, sem esquecer o aspeto mental, onde continua a ser um dos jogadores com mais capacidades a nível Mundial. Por isso mesmo continua a alto nível no Juventus FC e na seleção Italiana, aos 38 anos.



quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Artificialização do Futebol de Rua - Uma metodologia para trazer a Rua para a Academia

São várias as referências que nos ajudam a entender melhor a importância que o Futebol de Rua teve (e ainda tem) na formação técnica e humana do jogador. O livro “Futebol de Rua, um Beco com Saída - Jogo espontâneo e prática deliberada” de Júlio Garganta e Hélder Fonseca; e a REPORTV “No princípio era a bola” realizado e emitido pelo canal desportivo SPORT TV, são excelentes exemplos dessa valorização da que para nós é a melhor academia do mundo – a Rua!

Embora habitemos numa zona do país que permita que haja algum Futebol na Rua, nem todas as crianças que competem de forma formal, praticam a modalidade no seu dia-a-dia. Assim sendo, com esta reflexão pretendemos partilhar alguns pressupostos metodológicos que utilizamos no nosso processo de treino, tendo em conta a “artificialização” do Futebol de Rua.

espaço/tempo livre de treino – Na Rua não há treinadores, posições nem constrangimentos.
Consideramos bastante importante que sejam criadas áreas no treino que sejam livres de qualquer instrução por parte dos treinadores. Assim, os jogadores terão o seu espaço e tempo livres para experimentar, brincar e fantasiar à sua maneira.
Esta opção metodológica permite que haja uma auto-organização bastante interessante do grupo, assemelhando-se ao que se vê na Rua. Aqui, neste espaço, é muito comum existirem comportamentos mais invulgares como os jogadores de campo trocarem de funções com os guarda-redes, criarem-se desafios com aprendizagens novas, surgirem “árbitros”… Auto-escolhas que habitualmente não são consideradas pelos treinadores.

a não existência de uniformes de treino – Na Rua, qualquer roupa serve para se jogar à bola.
Ao colocarmos todas as crianças a vestir da mesma forma estamos, de certa maneira, a criar marcadores visuais muito homogéneos nas mesmas, impedindo o desenvolvimento da sua neuroplasticidade. Quando o mecanismo visual das crianças ainda está muito focado na bola, é importante que hajam alguns elementos que “stressem” positivamente a absorção de informação do envolvimento e nada melhor do que haver muitas cores e padrões para assimilar.
Além disso, na nossa opinião, esta opção – muitas vezes ligada à parte financeira do clube – contribui ainda para que a individualidade de cada jogador não emerja na equipa. As t-shirts dos clubes/jogadores preferidos são substituídas pela camisola do patrocinador, fazendo com que se perca a fantasia e a magia dos ídolos dos mais novos e com isso alguns comportamentos-exemplo não sejam tão repetidos/praticados como se desejaria.

a presença de sinalizadores dispersos aleatoriamente nos exercícios – A Rua está cheia de obstáculos que provocam trajectórias da bola menos lineares.
Esta opção de se colocarem sinalizadores aleatoriamente nos espaços de exercício, pretende simular a existência de obstáculos naturais presentes no Futebol da Rua. Já que nos pavilhões e nos relvados sintéticos não existem relevos no piso que possam provocar adaptações neuronais relacionadas com o controlo da aleatoriedade da trajectória da bola, os sinalizadores poderão ajudar a desenvolver essa capacidade.

trabalho de casa – Na Rua pode-se jogar todos os dias. Nos clubes só se pode jogar na hora dos treinos.
Ao promovermos a realização de “trabalhos de casa” – em especial em processos de treino restringidos a dois treinos semanais – estamos, indirectamente a convidar as crianças a aumentem a sua quantidade da prática do Jogo. No fundo, tentamos acrescentar um treino extra-clube ao processo semanal, orientado para espaços menos artificializados do treino.

o não-uso de coletes – Na Rua não existem coletes. Quando muito jogam os que têm camisola contra os que não têm.
Em quase todos os exercícios de confronto e oposição, uma das equipas ou jogador usa colete. Esta opção, cria de certa forma uma mecânica facilitadora à interpretação do meio envolvente por parte da criança.
Elas, ao saberem que os seus adversários são os jogadores que vestem uma cor diferente da sua, têm uma tarefa simplificada, já que não têm que estar tão concentrados nem têm que ser tão periféricos na sua análise e interpretação do ambiente de Jogo.

variabilidade do tipo de bola e de piso – Na Rua, qualquer bola e piso servem para se jogar.
Assim, diferentes bolas, com as suas diferentes superfícies, pesos e tamanhos, deverão ser utilizadas para ajudar a desenvolver as habilidades técnicas dos jogadores. A sua variabilidade permite à criança adquirir diferentes ajustes neuronais que provocam um maior controlo sensório-motor na sua relação com a bola.
Também o piso deverá ser diversificado. É diferente jogar-se no pelado, no relvado ou no alcatrão. Características como o atrito e a dureza do solo, as tensões musculares que actuam nos jogadores, os ressaltos do relevo, e até o receio que poderão provocar nos jogadores com a possibilidade de uma queda no mesmo, são bastante diferentes de piso para piso. É verdade que não é muito prático em termos de infra-estruturas treinar-se constantemente em diferentes pisos. Contudo, muitos complexos permitem que isso aconteça e os clubes e treinadores continuam a renegar os benefícios dessa condição.  

ausência de escalões – quando se joga na Rua, não existem os Sub9, Sub11, Sub13…
Não devemos nós potenciar no treino esta coexistência etária? Acreditamos que o contacto (devidamente reflectido pelo treinador) entre crianças mais novas e mais velhas, cria experiências diferentes sobre os jogadores, estimulando-as a ajustar os seus comportamentos em função de diferentes tipo de adversário. Fará sentido realizarmos com as crianças 100 treinos numa época sem se alterar minimamente o grupo de treino? A nós parece-nos que não.
No caso dos mais novos eles terão de pensar e fazer mais rápido, lerem e interpretarem melhor o jogo, serem mais agressivos, determinados e resilientes. Já os mais velhos terão mais tempo-espaço para experimentarem novos comportamentos e habilidades, terão oportunidade de ser mais técnicos e menos físicos e poderão tornar-se mais autoconfiantes na sua abordagem.

realização de jogos condicionados e de outras “brincadeiras” – Na Rua não há sinalizadores para contornar, nem “passa, tabela e vai”.
Quando se joga Futebol na Rua há o 1x2, o 2x2, o 2x3, o 3x3, o 4x5 e por aí em diante. Há o Jogo segundo determinada forma condicionada em função do número e da qualidade dos jogadores disponíveis. Não se contornam cones, nem se fazem exercícios analíticos de passe e recepção.
Para além das formas condicionadas existem anda outras brincadeiras muito enriquecedoras do ponto de vista da aprendizagem de determinadas habilidades e princípios. Na nossa região temos:
Jogo do Alemão – onde um jogador vai à baliza e todos os outros, em cooperação, tentam marcar golo depois após um remate precedido de uma bola aérea – tem de existir um remate de primeira sem que a bola contacte o solo antes do remate.
Jogo da Maria – em que um jogador tem a bola e todos os outros lha tentam tirar, utilizando para isso uns níveis de agressividade bem mais toleráveis que os níveis aceites pelas regras do Jogo.
Jogo do Vira – forma condicionada de jogo para quando apenas existe um guarda-redes. Ou seja, trata-se de uma forma jogada de 1x1, 2x2, 3x3, etc. em que ambas as equipas atacam e defendem apenas uma baliza, alternando-se o guarda-redes conforme o número de golos delimitado.

rotatividade do guarda-redes – Quando se joga na Rua, nem sempre há guarda-redes.
Julgamos interessante promover nalguns períodos do treino uma rotatividade relativa a esta posição específica. Somos a favor de uma experimentação de diferentes posições em campo, que permitam à criança terem diferentes estímulos inerentes à diferente zona do campo que ocupam.
Mais ainda para o caso particular do guarda-redes. É nossa intenção criar algum stress positivo junto das crianças que lhes façam ter mais bravura, uma interpretação diferente do jogo e, sobretudo, lhes ensinem a lidar com o insucesso da incompetência de jogar numa posição tão díspar da que estão habituados.
Além disso, em meios mais pequenos, poderá ser uma boa oportunidade de “descobrir” novos guarda-redes.


Com esta partilha tentámos mostrar a nossa visão sobre esta problemática do Futebol de Rua. Aguardamos que o debate surja e que diferentes formas de estar perante este “flagelo” sejam também partilhadas…