Porque é que um fenómeno tão global como o Futebol, a prática tem
de ser tão específica?
Os
grandes desportistas, neste caso, os grandes jogadores de futebol, são
sobejamente conhecidos, analisados e estudados. Todos sabemos quais são os
pontos fortes e fracos dos melhores jogadores do mundo, sendo natural que
ocorra neste momento uma mudança de paradigma quanto ao estudo desses
jogadores. Mais do que saber como é que os jogadores de top “são tão bons”,
pretende-se hoje em dia saber “como é que se tornaram tão bons” (Costa, 2005).
Uma
das teorias que se tem debruçado mais sobre o caminho que os expertos percorrem
para chegarem aos níveis de rendimento superior, e que é bastante aceite pela comunidade
científica, é a Teoria da Prática Deliberada, proposta por Ericsson, Krampe
& Tesch-Romer (1993).
A
Teoria da Prática Deliberada poderá sucintamente ser explicada pela realização
de “actividades designadas, normalmente, pelos professores / treinadores com o
único propósito de melhorar o desempenho do indivíduo” (Costa, 2005), onde
exercícios são inventados e os atletas minuciosamente monitorizados para que
possam ultrapassar as suas fraquezas (Moita, 2008).
Estando
o Desporto mais ligado à corrente Ambientalista da formação dos expertos, a
Teoria da Prática Deliberada tenta explicar, através dos seus princípios, essa
mesma formação. Falamos na corrente ambientalista, já que a prática e o treino,
mesmo que não sustentadas por qualquer teoria são necessários à concretização
do experto no Desporto. Contudo, a prática por si só, pode não ser condição
para se ser talento, pois este ponto gera ainda bastante controvérsia (Costa,
2005).
A
Teoria da Prática Deliberada aborda como princípios principais:
·
a necessidade do prática ser baseada em permanente esforço e concentração, sem que
o prazer esteja necessariamente presente no processo;
·
a regra ou lei dos 10 anos ou das 10 000 horas;
·
a procura de um processo não só quantitativo mas também qualitativo.
O princípio
que se refere ao esforço e à concentração, sem, muitas vezes, prazer, aborda a prática
de uma forma permanente, altamente estruturada, onde o objetivo principal é essencialmente
a melhoria do desempenho e não o divertimento. Essa noção de sacrifício, é defendida
para a potenciação e evolução qualitativa do jogador.
Para
esta teoria, o praticar como brincadeira, não leva a que o atleta alcance os
níveis desejados de expertise. Da mesma forma que a alta intensidade é exigida
ao jogador, também, o repouso e o descanso são necessários à otimização das
melhorias biológicas e fisiológicas do jogador. As boas prestações em treino
parecem estar relacionadas com níveis altos de concentração daí a inclusão
também deste elemento. Contudo, este princípio tem sido contestado nos jogos
desportivos coletivos, já que os jogadores têm expressado bastante
agradabilidade na realização dos exercícios com maior exigência ao nível do
esforço e da concentração. (Costa, 2005) Quanto ao princípio dos 10 anos ou das
10 000 horas está bastante provado nos JDC. Se olharmos para os melhores
jogadores do mundo das diferentes modalidades dos jogos desportivos coletivos,
vemos que eles precisam de percorrer um longo caminho, as tais 10000hs ou os
tais 10 anos, para chegar a um ponto ótimo de rendimento para que eles sejam considerados
expertos. A Teoria da Prática Deliberada, vai ainda mais longe no campo da biologia
ao referir que, com exceção da altura, todas as diferenças físicas poderão ser explicadas
pela prática longa e estruturada em determinado domínio específico. Esta
corrente diz-nos ainda que não há provas científicas na área da genética que
provem que o gene X predisponha o jogador a ser experto na modalidade X, daí o
alto valor da prática (Costa, 2005).
Finalmente,
abordando o princípio da qualidade do processo da prática, este é importante quanto
à procura da otimização da aprendizagem dos diversos domínios do expertise. Um processo
quantitativamente demorado mas que não seja devidamente estruturado nem exija ao
jogador o empenhamento devido pode não ser suficiente para o indivíduo atingir
o expertise. Daí que cabe ao treinador/monitor, através de uma alternância
progressiva de níveis de esforço e concentração, criar condições para que o
jogador maximize as adaptações biológicas, cognitivas, emocionais e técnicas,
necessárias à sua condição de experto. (Costa, 2005)
Então
mas que treino e que treinador?
O
Treinador tem um papel crucial no processo de formação do jogador. Desde a sua personalidade,
aos seus feedbacks, à sua interação e relação com os jogadores, até à própria operacionalização
dos treinos, tudo influencia positiva ou negativamente o percurso de aprendizagem
do jogador.
No
futebol, são vários os relatos que confirmam esta ideia, mas também o são os
casos de sucesso dos jogadores que durante muitos anos jogaram “apenas” na rua,
sem frequentarem nenhum tipo de escola, clube ou academia de futebol.
Curiosamente, ou não, no chamado “futebol de rua”, o jogador não tem qualquer
tido de orientação externa, não possui uma voz ativa e de comando que dirija o
processo de aprendizagem. É por isso que acreditamos que um bom treino seja
mais importante que um bom treinador.
Contudo,
julgamos também que um bom treinador, contribui mais do que atrapalha na formação
de um jogador. O problema talvez surja pelo facto de muitos dos treinadores, principalmente
dos escalões mais precoces, não saberem lidar com as especificidades e o contexto
inerentes às crianças, aplicando métodos, objetivos e exigências, completamente
desproporcionais a ela.
Já
em relação ao treino, mais do que a quantidade (também importante) parece ser a
qualidade aquela que mais contribui para diferenciar um experto e um não experto.
Desde logo deverá ser um processo com atividades específicas que contribuam
para a aquisição da expertise. Este continua a ser um ponto ainda muito núbio e
muito discutido, já que alberga em si um elevado grau de subjetividade sobre o
que é específico ou não. Na nossa opinião, um treino específico no futebol de formação,
deverá ser aquele que se foque na assimilação de padrões qualitativos elevados
no desempenho integrado dos quatro domínios (técnico, emocional, cognitivo,
fisiológico), tendo em conta dois elementos essenciais que são: o enquadramento
do futebol nos JDC e o facto de se jogar com os pés.
Assim,
o treino deverá potenciar o Domínio:
Técnico
– através da promoção da adaptabilidade do trem inferior do corpo, a uma funcionalidade
que ele não está “programado”, o Futebol. Os pés e as pernas, são basicamente estruturas
de suporte do corpo, a evolução da espécie a isso o levou, pedindo o futebol
coisas aos pés, que essa mesma evolução, diz para pedirmos às mãos. É por isso
necessário, que o ensino potencie ao máximo esta “nova” função que o futebol
exige ao corpo, neste caso, aos pés e às pernas. Tal como as pessoas que nascem
sem braços conseguem pentear-se, conduzir, cozinhar, pintar, tocar
instrumentos, através de uma prática intensa, continuada e precoce nessas
ações, também o treino no futebol, precoce e devidamente montado, poderá
oferecer ao jogador uma forte capacidade técnica de relação com bola, nos seus
diferentes elementos: drible, receção, passe, remate, condução rápida, mudança
de direção, finta... é por isso possível estimular o trem inferior na sua
componente motora e sensitiva, atribuindo em treino essas novas
funcionalidades. (Maciel, 2008) Claro está que as mesmas só fazem sentido se “transferidas”
para o jogo, pois os malabarismos pertencem aos circos.
Cognitivo
– tendo o treinador a consciência do elevado grau de complexidade que o jogo de
futebol confere por ser jogado em constante oposição/cooperação. Essa dualidade
deverá ser maximamente explorada, sempre que possível, no treino, favorecendo
qualidades como a “leitura” de jogo, a capacidade decisional, a antecipação e a
concentração.
Emocional
– através de contextos minimamente prazerosos ao jogador, que o façam sentir gosto
pela modalidade que pratica, mesmo que esse gosto seja alcançando através de
muito esforço e concentração. Estando provado o efeito que a emoção cria na
aprendizagem, o treino deverá saber oferecer esse “rebuçado”, de recompensa,
mesmo que indireta, pelo esforço da criança e do jovem. Além disso, o
sacrifício, a adversidade, a injustiça, sempre que utilizados de uma forma
pedagógica poderão ajudar o jogador a tornar-se mentalmente, mas sobretudo
“comportamentalmente” mais forte.
Fisiológico
– através do conhecimento dos efeitos fisiológicos das diferentes componentes
da “carga” de treino (volume, intensidade, duração, frequência, densidade),
assim como o devido conhecimento das janelas sensíveis de treinabilidade. Estas
janelas estão relacionadas com períodos etários na maturação do indivíduo que
permitem uma melhor assimilação e desenvolvimento das capacidades motoras. Nem
todas as capacidades motoras coordenativas ou condicionantes, se desenvolvem na
mesma altura, sendo por isso necessário ao treinador/professor/monitor estimular
a criança ou jovem segundo esse princípio (Neves, 2010).
Referências
Bibliográficas
Costa,
R. (2005). “O caminho para a expertise” A Prática Deliberada como catalisador
do processo de formação dos expertos em futebol. Monografia não publicada,
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, Porto.
Ericsson, K.; Krampe, R. &
Tesch-Romer, C. (1993). The role of deliberate practice in the acquisition of
expert performance. Psychological Review, 100, 363-406.
Maciel,
J. (2008). A (In)(Corpo)r(Acção) Precoce dum jogar de Qualidade como
Necessidade (ECO)ANTROPOSOCIALTOTAL – Futebol um Fenómeno AntropoSocialTotal,
que “primeiro se estranha e depois se entranha” e... logo, logo, ganha-se!
Moita,
M. (2008). Um percurso de sucesso na formação de jovens de Futebol. Estudo
realizado no Sporting Clube de Portugal – Academia Sporting/Puma. Monografia
não publicada, Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, Porto.
Neves,
J. (2010). Caracterização multidimensional de jogadores de futebol com 13-14
anos - Estudo com equipas da Associação de Futebol de Coimbra. Dissertação não
publicada, Faculdade de Ciências do Desporto e da Educação Física da
Universidade de Coimbra, Coimbra.