terça-feira, 12 de maio de 2020

Entre-Linhas com João Ramos


Para esta nova conversa “Entre-Linhas” convidámos o João Ramos para partilhar um pouco das suas crenças e opiniões acerca de algumas temáticas do Jogo e do Treino.
Tivemos o privilégio de conhecer o João na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto. Aluno aplicado nas disciplinas de Futebol, partilhamos o estágio na Escola Academia Sporting de Alfena.
Tem feito o seu percurso em equipas de base de vários clubes a competir nos Campeonatos Distritais da Associação de Futebol do Porto e, nesta época que está a findar, teve a seu cargo duas equipas, nos escalões de Sub9 e Sub14.
Nesta “conversa” poderemos ficar a conhecer melhor aquilo em que este jovem treinador acredita no que diz respeito a temáticas como a metodologia de treino de crianças e jovens.

1.    Estando tu a trabalhar com escalões etários de Sub9 e de Sub14, que particularidades da criança/jovem e do próprio jogo devem estar contempladas no teu processo de treino? Isto porque muitas vezes ouvimos e lemos que é diferente treinar crianças de adultos mas na prática nem sempre acontece essa adaptação.

Neste aspeto, creio que é importante termos em conta duas questões: o jogo é o mesmo, independentemente da etapa maturacional e nível competitivo, os fundamentos básicos são os mesmos, mas depois, cada contexto competitivo, seja pelo escalão etário, seja pelo nível de qualidade dos intervenientes, irá encerrar em si um conjunto de particularidades que torna qualquer um desses contextos singular.
Assim, e partindo deste pressuposto, assumo como lógico termos o cuidado de conhecer bem o contexto no qual estamos a intervir e adaptarmos a nossa intervenção sobre ele, sem nunca esquecer os fundamentos de base que o jogo aporta.
Atendendo aos escalões em questão, ambos os casos contemplam particularidades bem distintas, as quais terão de estar presentes no processo de treino de forma a que este se encontre adequado e vá de encontro aos objetivos de cada equipa, mas ambos assentes na essência do jogo e num determinado jogar, que na sua génese pode e deve ter similaridades.
Referindo-me ao caso concreto dos sub9, falamos de um contexto em que os atletas ainda estão numa fase precoce de contacto com o jogo, em que tem de haver uma necessidade de adaptação ao nível da comunicação e da forma como lhe são passados os conhecimentos para que vão entendendo o jogo dentro de uma realidade intelectual adequada à sua idade e desenvolvimento, em que a sua consciência costuma ser muito mais centrada no eu, mas onde se pretende construir também uma consciência coletiva, onde haja um processo em que a atuação individual seja de uns em função dos outros dentro de uma lógica sistémica. Espera-se que os jogadores nestas idades ainda sejam quase que uma “folha em branco” em que o seu conhecimento do jogo ainda seja muito mais na base da intuição, de uma forma mais “selvagem” e menos modelada, mais centrada no individual e, consequentemente, se encontre num nível de complexidade mais básico. Para além deste aspeto, não podemos esquecer que nestas idades o modelo competitivo se baseia no jogo de 7x7, que por si só se manifesta numa complexidade diferente do jogo de 11x11. Neste caso concreto, da realidade na qual estou inserido, este foi um ano transição do futebol de 5 para o futebol de 7, o que exigiu uma adaptação a um diferente espaço, a um maior número de relações entre os diferentes jogadores, o que levou os jogadores a ter de desenvolver uma diferente abordagem ao jogo, e que condicionou de forma decisiva a construção do processo de treino de maneira a garantir a sua adaptação a esta nova realidade.
Para além das questões de âmbito mais metodológico, não podemos descurar os seus interesses e necessidades enquanto crianças, pelo que julgo ser importante ter sempre presente ao longo do processo um lado mais lúdico, que estimule a paixão pelo jogo e pelo treino, que com certeza irá promover uma aprendizagem mais rica e consolidada.
Se a paixão pelo jogo deve ser algo sempre presente em qualquer âmbito, julgo que o lado lúdico, a liberdade de explorar, ser criativo, poder errar, têm de ser fatores bem vincados nestas idades, para que os jogadores disponham de um ambiente de desenvolvimento agradável e facilitador do crescimento enquanto crianças e atletas.
Por seu lado, nos sub 14 deparámo-nos com jogadores com um nível de conhecimento do jogo mais abrangente, alguns deles com metade dos seus anos de vida já em contexto competitivo, o que tornou possível uma abordagem mais complexa no seu processo de treino.
Embora neste escalão possa já haver um domínio de alguns dos princípios básicos do jogo, há a necessidade de modelar, aperfeiçoar e dotar os jogadores de uma maior abrangência de conhecimento do jogo e das suas capacidades técnicas, permitindo-lhes vivências que os dotem de maiores capacidades para o futuro enquanto futebolistas.
Nesta fase de desenvolvimento, os jogadores já terão na sua mente algumas ideias pré-concebidas sobre o jogo, pelo que lhes foi passado anteriormente, por possíveis sucessos já alcançados, e cabe-nos a nós criar-lhes desafios que os levem a continuar a explorar e encontrar diferentes formas de solucionar constrangimentos, e desta forma aumentar a sua abrangência de jogo, tanto a nível decisional como técnico.
Neste caso, julgo também ser importante  olhar a aspetos que vão para além dos metodológicos e, mantendo alguma parte mais lúdica, creio que nestas idades podemos desafiá-los a olhar para o jogo de uma forma a entendê-lo, mas mantendo o objetivo de desenvolver nos jogadores a paixão pelo jogo e pelo treino. Procuro que eles comecem a questionar-se pelo que vai acontecendo no jogo, a pensar sobre ele, no sentido de o entenderem e se apaixonarem pela sua complexidade, mas mantendo ainda o seu estado mais essencial, pois todos eles devem estar neste contexto pela paixão ao jogo e com o foco mais centrado na sua evolução e desenvolvimento das suas capacidades, deixando um pouco para segundo plano o lado competitivo (defendo que este esteja presente, e que é um fator promotor de desenvolvimento, mas que não deve ser ele o elemento central do processo nestas idades).


2.    Ruben Jongkind, ex-Ajax, dizia que o escalão Sub14 era o mais difícil de treinar devido a toda a complexidade maturacional que eles têm. Conferes estas declarações?
No meu entender, creio tratar-se de um escalão etário que encerra em si próprio um conjunto de particularidades que realmente o tornam num desafio complexo e tudo se deve essencialmente a um fator chave presente nesta etapa, a heterogeneidade.
Neste escalão deparamo-nos com jogadores que estão em estágios de desenvolvimento físico e cognitivo por vezes muito díspares, o que leva a que a nossa ação e o desenvolvimento do processo tenha de ser pensado e construído tendo em conta estas diferenças. E o desafio é esse, fazer com que o processo seja rico e adequado para todos, quando podes encontrar na tua equipa jogadores com 7 anos de competição, que entendem o jogo do ponto de vista individual e coletivo com algum nível de complexidade, mas também tens jogadores que inciaram a sua atividade competitiva na corrente época, e que ainda necessitam de adquirir os fundamentos de base, como adaptar um processo em que tens jogadores que já atingiram o seu pico de velocidade de crescimento, e outros nos quais sentes que essa fase ainda estará por vir, e mesmo ao nível da personalidade, em que tens atletas com um nível de responsabilidade elevado (e aqui refiro-me à sua forma de encarar o treino e o jogo) e outros para os quais esse ainda não é um fator tão preponderante.
Não é fácil conseguires operar um processo de treino em que te deparas com miúdos a competir entre si, em que podes ter um ou outro com um físico quase de sénior, com 1,80m e 75kg, e outros que se assemelham a sub 11, com pouco mais de 1,50m e 40kg, e desenvolveres estratégias para todos eles tirarem o máximo das suas capacidades e operarem um processo em que qualquer um deles, dentro desta variabilidade, se mantenha envolvido numa ideia global comum e que vá conduzir a um crescimento sustentado e efetivo onde vigore a equidade de oportunidades.
Assim sendo, torna-se complexo trabalhar uma articulação de uma linha defensiva em que tens jogadores que podem ainda não ter consciência de quando realizar pressão ou contenção e outros colegas de setor que já dominem os fundamentos que lhe permitem jogar com a regra do fora-de-jogo, por exemplo. Aqui, há o desafio de desenvolver estratégias que permitam a todos eles cresecerem dentro do seu nível de jogo, sem que uns saiam desfavorecidos em relação a outros, sem perder de vista o evoluir da equipa no seu lado coletivo.
Atendendo a estes factores, concordo com esta visão de Ruben Jongkind, atestando que o trabalho com este escalão é de uma elevada complexidade, uma vez que é necessária uma articulação de diversos factores de maneira a conseguir transformar essa heterogeneidade numa convergência que nos leve a um processo de treino capaz de se adaptar a todos e promotor do desenvolvimento de todos os jogadores num contexto de equidade, e de um jogar de qualidade que permita a evolução de todos individual e coletivamente.

3.    Sobretudo com os mais novos deves ter que adaptar a tua comunicação. Podes dar alguns exemplos de como adaptas a tua linguagem futebolística a crianças com 7, 8 e 9 anos de idade?
Nestas idades procuro que tudo o que lhes transmito na minha comunicação seja o menos abstrato possível. Assim, recorro muitas vezes ao vídeo para que eles percebam a informação que eu pretendo passar mas, sobretudo, utilizo várias analogias que lhes possibilite associar os comportamentos que se pretendem com situações que para eles são claras e objetivas.
Por exemplo, para que entendam o conceito de retirar espaço ao portador da bola, utilizo a analogia a uma lanterna: “imaginem que o jogador que tem a bola tem uma lanterna, e que a sua luz se vai espalhando. Se nos colocamos longe da lanterna, ela vai continuar a espalhar-se e iluminar muito espaço. Por outro lado, se nos colocamos junto à lanterna, tapamos a luz e ela vai deixar de iluminar. Ou seja, se estamos longe do adversário que tem a bola, ele tem espaço para jogar com os colegas, se nós estamos junto a ele, ele fica sem espaço para jogar a bola”. Com esta analogia, eles percebem que têm de “tapar a lanterna”, isto é, pressionar o portador da bola, reduzindo-lhe o espaço e as suas opções para jogar.
Utilizo também o conceito de “guarda-costas”, para que eles percebam melhor a necessidade de realizar coberturas, o conceito de encontrar “auto-estradas” (caminhos mais rápidos e sem “obstáculos” para chegar à baliza adversária), ou o pedir para “procurar buracos” como forma de simplificar a indicação para identificar e ocupar espaços livres.
No fundo, o importante é levar a que eles consigam atribuir símbolos que lhes permitiam dar significados objetivos a conceitos que por si só seriam demasiado abstratos para o seu entendimento nestas idades. Deste modo, eles vão entender melhor o que têm de fazer, pois tudo é transmitido numa linguagem familiar para eles, que os leva não só a perceber o que eu quero dizer, como confere sentido e lógica aos comportamentos que eles têm de fazer e, acredito eu, lhes permite entender melhor a lógica do jogo de uma forma mais simples.

4.    Tendo uma relação emocional ao Futsal, operacionalizas algum transfer desta modalidade para o Futebol enquanto treinador, em especial enquanto treinador de Formação?
Sem dúvida. Iniciei a minha prática no Futsal, passando depois para o Futebol, e atualmente continuo a praticar Futsal, pela paixão que tenho pelo jogo. E sempre senti enquanto praticante que consegui transferir aprendizagens de uma modalidade para a outra, e que isso me ajudou a ser mais completo, tanto a nível técnico como decisional.
Pelas suas particularidades, creio que o Futsal é uma modalidade muito rica para a aprendizagem de várias capacidades importantes para o jogo de futebol. Pelos seus condicionalismos a nível de regras, o espaço reduzido, a rapidez do jogo e o facto de haver um contacto mais frequente com a bola vai permitir um aprimorar das capacidades técnicas de uma forma mais constante e exigir uma adaptação mais frequente ao contexto pela velocidade com que este varia, desenvolvendo um pensamento e tomada de decisão mais rápidos, uma maior mobilidade e imprevisibilidade de forma a conseguir ganhar tempo e espaço, a necessidade de estar constantemente preparado para alternar entre processos ofensivos e defensivos mantendo a equipa equilibrada e a exigência de ser rápido e eficaz em todos os momentos de jogo para garantir sucesso, e julgo que todos esses fatores podem e devem ser transferidos para o jogo de Futebol de uma forma proveitosa.
Deste modo vejo no Futsal uma modalidade na qual consigo ter características que me permitem evoluir a nível de capacidade técnica, de velocidade de tomada de decisão e ocupação/exploração de espaços, pelo que tento retirar desta minha vivência algo que me permita melhorar o meu processo de treino no Futebol, mais ainda na formação, em que este tipo de caracterísitcas devem ser permanentemente estimuladas para que os atletas desenvolvam competências que os permitam ser melhores tecnicamente e velozes na adaptação ao contexto, ao nível do pensamento e tomada de decisão.

5.    Julgamos que partilhas connosco a ideia dos benefícios do Futebol de Rua na formação desportiva das crianças. Que estratégias usas no treino para minimizar os estragos da ausência desta “academia de talentos”? Ou seja, em termos práticos, como trazes a Rua para o Treino?
Apesar de ter crescido num meio urbano, as crianças da minha rua juntavam-se nos pátios uns dos outros a jogar, e isso sempre foi algo que me fascinou, jogar 2 contra 5, jogar contra mais velhos, mais novos, defendia como guarda-redes o que estava mais atrás, e procuro ir buscar essas coisas dos tempos de criança e trazer um pouco disso para o treino. Porque hoje em dias as crianças e jovens não têm isso, os meus pais moram no mesmo local, e eu vou lá a casa e durante o dia não se vê um miúdo no pátio a brincar.
Reconhecendo esse contexto como algo rico para o desenvolvimento de características importantes para o jogador, como a criatividade, a agilidade, coordenação, melhoria da técnica individual e, consequentemente, para um enriquecimento do jogar da equipa, procuro que em grande parte dos exercícios haja sempre espaço para existir um pouco de rua. E procuro isso de formas muito distintas:
Jogar sem espaços definidos de campo, números de jogadores diferentes do convencional (equipas com número de elementos diferentes), ambas as equipas sem coletes, jogos em que os próprios jogadores é que são os árbitros e definem o assinalar de faltas, se uma bola sai, a bola é de quem tiver primeiro uma bola para seguir o jogo,deixar que as equipas assumam a identidade de uma equipa e dos seus jogadores (determinada equipa é o Barcelona, e um deles é o Messi, outro o Suarez e outro o Rakitic...), e tendo sempre presente a competição, algo que vejo como sendo fundamental e que é promotor de um maior empenho dos jogadores nas suas tarefas. Isto em situações de treino mais convencionais.
Depois há certos momentos em que procuro mesmo algo mais diferenciado, e aí está dependente dos recursos que tenho à minha disposição. Recordo-me num clube em que trabalhei, que havia um espaço por trás de uma bancada, em relva e terra, e que tinha muros a toda a volta, num formato irregular, mais largo nuns espaços que noutros, em que formávamos as balizas com camisolas, chuteiras, o que fosse, e a partir daí organizávamos torneios, sem qualquer tipo de regras a não ser muda aos 3 e acaba aos 6, por exemplo. E adquiríamos coisas fantásticas, porque vias comportamentos de alguns miúdos que não eras capaz de ver no campo, a forma como tentavam adaptar-se ao contexto,como tiravam partido dos graus de liberdade que este tipo de jogo lhes permite ter.
No fundo, procuro que haja sempre momentos em que os graus de liberdade sejam maiores, para que eles explorem o jogo na sua essência, da mesma forma que nós o explorávamos em criança com o “futebol de rua”.
E dentro do treino mais convencional de Academia (se é que lhe podemos chamar assim) procuro ter sempre características nos exercícios que permitam aos jogadores ir buscar algo da rua, ter essa liberdade de arriscar, procurar coisas diferentes, estimular o evoluir da destreza motora, pois acredito que tudo isso irá enriquecer o processo e o crescimento dos jogadores.
 
6.    Qual a tua opinião acerca do “uso” do Futebol como contexto de desenvolvimento da literacia motora? Ou seja, numa sociedade cada vez mais sedentária e pouco estimulante do ponto de vista motor, até que ponto as escolas de Futebol deverão ser usadas como espaço de Educação Física?
De facto, hoje em dia o estilo de vida de uma criança, tanto com 8/9 anos, ou com 13/14 anos, fazem com que haja um menor número de estímulos no seu dia-a-dia que lhes permita desenvolver capacidades coordenativas, de agilidade, e isso é notório na forma como elas se comportam a nível motor.
No ano passado estive a lecionar Educação Física em duas escolas primárias inseridas em contextos sociais bastante distintos, apesar de muito próximas uma da outra: uma em que os miúdos saíam do portão da escola e estavam dentro do bairro social, em que se mantinham todos juntos a brincar após o fim das aulas, e outra em que todos os miúdos iam embora de carro com os pais ou avós, ou na carrinha do ATL. E o que verificava era que o desenvolvimento motor daquelas crianças era bastante diferenciado, e muito pelos graus de “liberdade motora” que cada um dos contextos lhes permitia ter. Desta forma, a sua predisposição para correr, saltar, coordenar-se era significativamente maior no contexto em que havia um estilo de vida mais dinâmico. Consigo notar também, que na maioria dos casos, alunos que estejam envolvidos numa atividade desportiva fora da escola, normalmente revelam uma maior apetência para a aula de Educação Física. Posto isto, creio que se torna óbvio concluir que hoje em dia a Educação Física, por si só, não está a conseguir cumprir o seu desígnio fundamental de tornar os alunos mais literados a nível motor, muito por causa da falta de exercitação que as crianças e jovens têm fora do seu horário letivo devido a um estilo cada vez mais sedentário, e de várias atividades que lhes são muito apelativas promoverem a ausência de movimento. E tendo por base este pressuposto, torna-se fundamental pensar nesta questão no processo de treino, pois quanto mais desenvolvido do ponto de vista motor a criança ou o jovem for, mais preparado estará para desenvolver o seu jogar.
Deste modo, procuro contemplar isso nos treinos, e promover contextos de exercitação que apelem ao desenvolvimento destas capacidades básicas que exigem controlo motor, destreza, coordenação, velocidade, velocidade de reação, por forma a que estas crianças e jovens consigam ter um maior domínio do seu corpo que lhes permita realizar com mais sucesso as tarefas do treino, mas também que lhes possibilite ser pessoas com níveis de desenvolvimento mais elevado, algo que certamente os irá ajudar a ter melhor qualidade de vida no futuro.

7.    Qual tua opinião acerca das “Posições” na Formação? Temos lido que muitos jogadores a Top foram “desposicionados” no seu processo formativo para ganharem outras qualidades através de novas vivenciações…  
Acredito que um jogador consegue ser melhor quanto maior é o seu conhecimento e entendimento do jogo, e que durante o seu processo formativo irá beneficiar tanto quanto maior for a variedade de estímulos e desafios que lhe forem colocados ao longo deste processo.
Sobre este tema, recordo-me de ouvir recentemente duas histórias que ilustram um pouco isto e que sustentam a minha ideia sobre este tema:
-Numa entrevista, VanDijk referiu que um dos segredos para a sua eficácia enquanto defesa central era a forma como conseguia interpretar e antecipar os comportamentos que os avançados iriam ter, permitindo-lhe estar melhor posicionado perante eles, ter uma maior capacidade de desarme, etc. E, segundo ele, tal capacidade foi adquirida porque durante a sua formação ele jogou durante algum tempo como ponta de lança, o que lhe permitiu adquirir um entendimento sobre a posição que lhe possibilita agora ter mais sucesso na posição na qual atualmente é reconhecido como um dos melhores do mundo.
-Denis Bergkamp, que tem mantido ligação ao trabalho com escalões de formação, referia que alterava as posições dos seus jogadores em campo (neste caso concreto que li, referia-se ao trocar os extremos para o lado contrário ao pé dominante), no sentido de os obrigar a procurar soluções diferentes, de forma a não formatar o seu jogo e, deste modo, dotá-los de uma maior variabilidade de recursos que no futuro permitiriam ao jogador encontrar soluções para um maior número de constrangimentos que o jogo lhe colocasse.
Pegando nestes dois testemunhos, acredito que os jogadores ao longo do seu processo formativo devem ser estimulados a passar por diferentes posições, de forma a conseguir vivenciar diferentes situações que lhes permitam entender melhor o jogo e antecipar cenários, e ao mesmo tempo desenvolver uma maior variabilidade técnica e tática que lhes possibilite aumentar os seus recursos e a capacidade de encontrar soluções para resolver os problemas com que se deparem.
Apesar disto, acredito que este tipo de estratégia deve ser feita tendo sempre como premissa colocar o jogador neste tipo de situações de uma forma controlada, garantindo que este terá um mínimo de “conforto” que lhe permita encontrar soluções para fazer face aos constrangimentos que vai enfrentar e possa ter sucesso, pois só desta forma as vivências irão permitir-lhe uma aprendizagem consolidada.
De uma forma prática, procuro que nas minhas equipas os jogadores se habituem a que as posições definidas são apenas um ponto de partida, e que o jogo é algo dinâmico e que eles devem estar preparados para isso e, assim sendo, quanto maior capacidade eles tiverem de assumir diferentes posições, mais fácil será de assegurar essa dinâmica e conferir imprevisibilidade ao nosso jogar, característica que acredito que deve estar sempre presente para que o processo seja rico e de qualidade.
Depois, vou procurando em certos momentos que os jogadores passem por determinadas posições com o intuito de potenciar capacidades, fazê-los entender certos aspetos do jogo para os quais eles se calhar até então não estavam tão conscientes, sempre com o objetivo de que estes aumentem a sua capacidade de resposta aos constrangimentos do jogo.
Tomando um exemplo prático: um jogador que jogue como defesa central, vai ter um determinado padrão de constrangimentos em fase de construção diferente de um pivot ou de um avançado: a pressão que irá sofrer será proveniente de determinadas zonas, as suas receções terão de ser orientadas para certos sentidos, as  soluções de passe também serão dentro de um determinado padrão. Assim, se esse jogador passar toda a sua formação nessa posição, só irá estar sujeito a esse tipo de constrangimentos de uma forma constante, o que o vai tornar menos preparado em jogo, e com uma menor abrangência de jogo. No entanto, se em determinadas alturas da formação ele tiver de jogar a pivot, por exemplo, ele será desafiado a ter de orientar as suas receções de forma diferente, a decidir por soluções de passe diferentes, irá receber pressão por qualquer lado, e isso irá fazer com que ele tenha de desenvolver outras capacidades que o vai tornar mais variável nas suas ações e com um entendimento de jogo mais vasto.
Embora entenda que se deva escolher posições para os jogadores que os mantenham confortáveis no jogo, de forma adaptada às suas capacidades e que lhes permitam exprimir o seu potencial, será benéfico desafiá-los e colocá-los em alguns momentos em situação de desconforto que os vai levar a evoluir em determinados aspetos, a explorar novos recursos e que os vai levar a patamares mais elevados de crescimento.
 


8.    Tínhamos que tocar na questão do Modelo de Jogo… Será que há Jogares que são mais ricos do ponto de vista formativo do que outros?
A meu ver, o jogador forma-se num contexto mais rico se consegue estar mais tempo em contacto com a bola, com o jogo e contextos que lhe permitam dotar-se de um pensamento mais complexo e de um maior entendimento do jogo. E isso faz-se jogando, e dentro de um jogar que seja rico, variável, que permita ao jogador possuir essas vivências que o vão conduzir a um aporte maior de recursos para adaptar-se e dar resposta aos contextos com que se vai deparar em jogo.
Deste modo, se no alto rendimento se pode dizer que um modelo de jogo é de qualidade se no final alcança objetivos, e que a esse patamar o objetivo primordial é sempre o resultado, na formação isto deve ser visto de forma diferente. Embora eu pense que o modelo de jogo de qualidade vai permitir alcançar objetivos, estes serão claramente diferentes num contexto formativo, em que haverá uma ação mais centralizada no jogador e na sua evolução. Deste modo, se eu no rendimento aceito que uma equipa se baseie num modelo em que apenas se preocupe em jogar maioritariamente sem bola e atacar o adversário em transição do mesmo modo que outra privilegie um jogo mais dinâmico e associativo, desde que no final consigam atingir resultados (embora me atraia mais a segunda forma), na formação não posso aceitar isso, porque tenho de promover contextos que permitam aos jogadores melhorar as suas capacidades e evoluir, e a sua evolução será diferente se estiver exposto a um contexto redutor ou a um contexto diversificado do ponto de vista dos seus estímulos.
Sustento isto com o que li há uns tempos, em que um treinador dizia algo deste género: “Se hoje treinarmos duas equipas, com jogadores do mesmo nível, e eu orientar um processo tendo em vista a melhoria do seu entendimento do jogo e tomada de decisão, e tu orientares a tua equipa de uma forma mais estratégica e centrada em explorar as debilidades da minha equipa, é mais do que provável que venças o jogo. No entanto, daqui a 2 ou 3 anos, mantendo esta forma de treinar, tenho a certeza de que a minha equipa se irá superiorizar à tua, pois conseguiu atingir um nível de jogo mais elevado.”
E eu acredito muito nisto, não podemos basear a nossa ação no aqui e agora, e tenho de pensar numa forma de jogar que permita aos jogadores ter um contexto promotor de um maior e mais variado número de aprendizagens. E para isso acontecer, tenho de contemplar no meu processo determinadas caracterísiticas, como  a necessidade de ter bola, jogar em função de  determinados espaços e determinados tempos, em que se crie uma visão sistémica da equipa na qual os jogadores devem jogar uns com os outros e uns para os outros, de forma a que o todo seja sempre mais forte que a soma das partes, e que  isso servirá de base para criar um contexto mais facilitador para  que todos possam crescer e explorar de forma mais produtiva o seu potencial.

9.    Como contemplas o desenvolvimento da dimensão técnica dos teus miúdos já numa fase menos infantil? Ou seja, muitos artigos dizem-nos que os “skills” são adquiridos numa fase mais precoce, mas a verdade é que alguns miúdos precisam de mais tempo para aprender a fazer uma recepção, um passe longo ou uma finta…
Acredito que, embora numa fase precoce a nível de idade haja uma maior predisposição para as crianças adquirirem certos padrões motores e habilidades técnicas de base, estas podem ser desenvolvidas e trabalhadas ao longo de toda a vida.
O que eu procuro é que em qualquer contexto de treino haja sempre espaço para fomentar o aprimoramento das capacidades técnicas dos jogadores, de forma mais ou menos vincada, de acordo com o tipo de exercício e de objetivos que tenho para aquele momento. E que o desenvolvimento dessas capacidades técnicas surja sempre de uma forma contextualizada com o jogo e, sobretudo, com o jogar que promovemos para a nossa equipa, pois só dessa forma faz sentido que elas sejam trabalhadas, pois só com essa contextualização é que elas vão emergir nos momentos necessários em jogo.
No entanto, nem todos têm os mesmos graus de destreza motora, e isso deve ser tido em conta, e cabe-nos a nós ter essa sensibilidade e procurar estratégias que permitam aos jogadores desenvolver-se tecnicamente de forma a fazer face aos problemas que vão surgindo. Preferencialmente sem receitas prévias,uma vez que  julgo ser mais proveitoso criar-lhes os problemas e eles, dentro das suas condicionantes, encontrarem recursos técnicos que lhes permitam solucionar esses problemas com sucesso, porque se não passamos do ato de formar para o ato de formatar, algo que considero nocivo para o desenvolvimento do jogador.
Ou seja, eu não estou à espera que todos eles me dêem a mesma resposta, do ponto de vista técnico, a um problema que lhes coloco. Espero é criar condições para que eles consigam encontrar soluções para fazer face a este problema.
O que eu quero com isto dizer é que não me parece que faça sentido ter uma preocupação excessiva de que a técnica do passe tem de ser de determinada forma, que a finta para ser bem feita tem de ser de certa maneira. Ou então nunca teríamos visto um Quaresma rematar de trivela com a qualidade e eficácia que este apresenta. Porque aquilo surgiu de uma adaptação ao contexto: mesmo com uma particularidade motora que este apresentava, que poderia ser vista como uma limitação (o facto de “meter os pés para dentro”), conseguiu encontrar uma solução que lhe possibilita solucionar problemas de uma forma muito eficaz.
Porque isto está dependente do seu padrão motor, e sabemos que nem todos o desenvolvem ao mesmo ritmo, e também está dependente da contextualização em jogo, e em que também nem todos eles conseguem adquirir a capacidade de o entender da mesma forma.
Depois, há todo um trabalho de desenvolvimento das capacidades individuais que pode ser feito, com diferentes níveis de complexidade, que podem ajudar um jogador a aprender, mas sobretudo a aprimorar a sua qualidade técnica em diferentes estágios de desenvolvimento.
Assim, creio que há espaço para a evolução a nível técnico ao longo de todo o processo e em qualquer fase, tendo consciência que esta evolução será sempre dependente das capacidades inatas de cada um, mas que podem ser mais ou menos potencializadas em virtude dos contextos de aprendizagem com os quais os atletas se deparem ao longo da sua carreira.

10. Para ti, qual o principal objectivo de um treinador da formação?
Fazer crescer os jogadores, torná-los melhores do que eram no momento em que iniciaram o processo, abarcando o máximo de esferas possíveis: desportivamente, nas suas relações sociais, valores humanos, tudo o que possa ser tido como formação integral do atleta enquanto jogador e pessoa, e que possa ser influenciado pela ação do treinador no processo de ensino-aprendizagem.
Claro que, sendo treinador de futebol, a maior missão será procurar que o jogador que passa pelas tuas mãos adquira competências técnicas e intelectuais ligadas ao jogo, mas também que este desenvolva uma paixão pelo jogo e pelo treino, que certamente serão fundamentais para o seu desenvolvimento enquanto atleta. Para além disso, há um conjunto de valores que não deve ser descurado, seja qual for o processo formativo no qual somos líderes, e que para mim assume uma importância igual às competências mais específicas da modalidade.
Assim sendo, o que eu procuro é influenciar os meus jogadores a apaixonarem-se pelo jogo de futebol, adquirirem um maior conhecimento do mesmo, preparando-os para dar resposta aos problemas que vão enfrentando no jogo, e dotá-los de valores que lhes possam ser úteis tanto no seu percurso desportivo, como noutras áreas da sua vida pessoal.
Sinto que alcancei os meus objetivos como treinador de formação no desenvolvimento de um processo quando sinto que os jogadores, após a vivenciação desse processo se manifestam mais variáveis do seu ponto de vista técnico e decisional, que vão estar preparados para enfrentar diferentes contextos de jogo, se encontram ligados à equipa, ao jogo, desenvolveram valores humanos que lhes permitam ter disciplina, respeito, ambição e que sejam competitivos, numa ótica de querer ser sempre melhores dia após dia.
No fundo, que após esse processo, tenham melhorado as suas capacidades no sentido de se encontrarem mais preparados para um dia estar mais próximos de poder chegar a um contexto de alto rendimento, se assim for o seu objetivo, mas também que consigam sair reforçados a nível de valores humanos que esta modalidade lhes pode conferir e que certamente os ajudará na sua vida futura.

11. Grande parte dos Treinadores que estão na Formação têm as suas principais referências em treinadores que estão no Futebol Sénior. Tens ideia de alguém que possa servir como referência ao nível do Futebol de Formação?
Procuro receber influência a todos os níveis e de todas as áreas que possam levar a uma reflexão e desenvolvimento de conhecimento que me permita melhorar o meu trabalho enquanto treinador.
A minha maior referência a nível de Futebol no geral, na forma de o refletir e entender é o professor Vítor Frade, que para mim deverá ser visto como uma referência do jogo na sua essência, independentemente do nível a que se esteja a falar, seja Formação ou Futebol Sénior.
Depois, torna-se mais fácil ter como referência treinadores que operam ao nível Sénior pela visibilidade que é dada ao seu trabalho, algo que não acontece com tanta facilidade ao nível do Futebol de Formação.
Não sendo fácil ir buscar estas referências, mesmo em algumas influências que vou buscar ao Futebol Sénior, procuro muitas vezes trazer das ideias desses treinadores tudo aquilo que pode ser transferível para o Futebol de Formação, até porque em vários casos eles apresentam um passado no qual já trabalharam a esse nível.
Relativamente ao Futebol de Formação, as minhas primeiras referências são sempre os treinadores com quem tenho a possibilidade de privar no dia-a-dia, nos clubes pelos quais vou passando, com mais ou menos experiência, pois acredito que na partilha de experiências, opiniões e conhecimentos vou conseguindo refletir e adquirir mais informação que me permite gerar mais conhecimento.
Depois, tenho alguns treinadores que vejo como referência que, embora nesta fase estejam a trabalhar a um nível Sénior, já tiveram um percurso no Futebol de Formação e procuro refletir sobre algumas das ideias que estes manifestaram enquanto trabalhavam nessa área:
Luís Castro, atual treinador do Shakhtar, e que durante cerca de dez anos coordenou o departamento de formação do F.C. Porto, e que sempre me despertou interesse pela visão que tem do que deve ser o processo formativo de um jogador, de qual o caminho a traçar para que este tenha um crescimento sustentado e integral que lhe permita chegar ao futebol de alto rendimento, e que ainda hoje tem isso presente na equipa que treina e demonstra sensibilidade na forma como procura que os mais jovens se integrem na sua equipa Sénior.
Pepijn Lijnders, pelo trabalho que desenvolveu ao nível do desenvolvimento de capacidades individuais de jogadores no departamento de formação do FC Porto, visível em alguns jogadores que saíram da formação deste clube, e que agora tenta transportar para o Liverpool, em que há uma preocupação grande em trabalhar essa vertente com os jogadores em idade de transição entre a formação e o alto rendimento (entre os sub19 e os sub23, processo que agora está a cargo de um colega nosso de ano de curso, Vítor Matos).
Dois treinadores que no processo de formação sempre demonstraram visões muito centradas no desenvolvimento do jogador de uma forma integral,  com uma preocupação no lado da parte decisional e de entendimento de jogo, do desenvolvimento da criatividade, princípios com os quais eu me identifico.
Para além disso, há equipas que seguem determinadas filosofias em relação ao futebol de formação com as quais eu me identifico bastante, sendo os dois casos mais flagrantes o Barcelona e o Ajax: a forma como defendem uma ideia transversal e que lhes confere uma identidade vincada é uma influência na qual procuro também sustentar o meu trabalho, adaptando-o às realidades nas quais vou estando inserido.