Num tempo de
isolamento social, nunca a Rua fez tanta falta.
Começamos esta consideração com uma frase do psicólogo
Eduardo Sá que nos diz: “A mim o que me preocupa é que os pais muitas vezes
digam que quando eram crianças brincavam, tinham uma vida ao ar livre, tinham uma
vida muito mais livre e que não queiram dar aos filhos aquilo que eles tiveram
de melhor na sua infância.”
Reconhecendo os pais o valor da Rua para o
desenvolvimento e crescimento das crianças e jovens, como acabaram por se tornar tão castradores
dessa liberdade para os seus filhos? Esta pergunta é o mote para toda a nossa
reflexão num período tão limitador de liberdades como o promovido pelo Covid-19.
Eduardo Sá vai mais longe quando sugere que “o Brincar”
deveria ser Património Imaterial da Humanidade, declarando que “nunca ouvi
falar tanto das crianças e nunca vi que se espatifasse tanto a infância”, com
menos de 1h por dia para brincar para cerca de 70% das crianças portuguesas.
Já em 2001, o Professor Carlos Neto falava em
analfabetismo motor, abordando a iliteracia física e motora devido ao desaparecimento
ou quase extinção da brincadeira de rua.
O problema não é novo. Mas a necessidade de alterarmos
este paradigma talvez nunca fosse tão urgente como agora, após semanas de
isolamento em casa.
As recomendações da
Organização Mundial da Saúde
Em 2018 a OMS publicou um documento que pretendeu “preencher
uma lacuna” sobre a actividade física em idades mais precoces. Assim, aos bebés
com menos de um ano, sugere-se a utilização dos tapetes interactivos e de pelo
menos 30 minutos diários em posição de bruços. Já entre o um e os cinco anos de
idade é recomendável que as crianças se mantenham activos pelo menos em 180
minutos diários, a brincar. Mesmo que a brincadeira não seja “energética” ou se
qualifique como “actividade física”.
Sendo a primeira infância um período muito rápido de
desenvolvimento cognitivo e físico pretende-se que um estilo de vida activo em
idades tão precoces seja catalisador de níveis de actividade física ao longo da
vida.
Também sobre o teletrabalho neste período, lemos várias
notícias que alertavam para as dificuldades dos pais lidarem com os diferentes
papéis e tarefas dentro de casa. Assumir a responsabilidade de Pais,
Funcionários e Professores pode ser bastante complicado. Mas se um adulto não
consegue lidar muito bem com essa variabilidade de responsabilidades,
imagine-se como será a vida de uma criança que entra na Escola às 09h, sai às 17h30
para o ATL, saindo deste apenas às 19h, em que tem muitas vezes que ser aluno
de matemática, estudo do meio, português, ginasta e músico, sem poder sequer
ser CRIANÇA.
Segundo os últimos rankings do Instituto para a Economia
e Paz Portugal tem-se situado no Top 5 dos países mais seguros e pacíficos do
Mundo. Ou seja, também não será por aqui que a Rua tenha perdido a sua
importância. Com certeza que os avós de hoje não gostavam menos dos seus filhos
do que os pais de agora, para permitir que a Rua fosse tão vivida há alguns
atrás.
Por todas estas razões, continuamos sem conseguir perceber
o porquê do desaparecimento de um dos melhores Contextos da desenvolvimento do
ser humano.
Assim, deixamos a partilha daquilo porque entendemos que
a Rua seja algo de tão importante, dividindo o seu conceito em três
sub-dimensões.
1. Rua enquanto contexto
de desenvolvimento – olhamos muito para
a Rua enquanto espaço-tempo de vivência motora repleta de estímulos
desafiadores do corpo e do risco. Desde o acto mais fino de apanhar um caracol ao
desafio total de uma subida a uma árvore, a Rua actua de uma forma Natural
sobre o Corpo, dando-lhe o tempo e o espaço necessários para o seu crescimento.
O facto de não haverem adultos por perto a constranger a liberdade de cada
criança com regras e obstáculos, permite uma emancipação das crianças e dos
jovens para os ajudar a eles próprios, por sua conta e risco, a desenharem e
ultrapassarem os seus próprios limites. Aqui as brincadeiras e as actividades
não têm hora para começar nem tempo para acabar. Não há uma sala de aula, nem
um campo pré-definido. A criatividade natural das crianças e jovens permite um
número de vivências quase infinitamente maior que aquelas vividas na escola.
2. Rua enquanto ambiente
de socialização – numa sociedade
cada vez mais individualista e egocêntrica, a Rua aparece novamente como um
excelente meio de convívio social. O facto da Rua promover muito a cooperação (e
também a oposição) entre crianças e jovens, potencia a valorização do Nós sobre
o Eu. Além disso, a Rua é ainda um ambiente de constante partilha, seja de
objectos, de vivências e até de alimentos. A força e o encorajamento na adversidade, a
resiliência para a superação, e a congratulação e partilha do contentamento,
são comportamentos que só vividos em comunidade permitem o desenvolvimento do
lado social do ser humano.
3. Rua enquanto local de
vivência emocional – o facto da Rua ser
um espaço muito rico ao nível Ecológico e Sociológico, potencia também uma
constante estimulação do lado emocional do indivíduo. O binómio desilusão vs
felicidade constantemente presente neste ambiente, através dos seus diferentes
obstáculos e barreiras, cria nas crianças e jovens uma necessidade muito grande
em saber lidar com as várias frustrações e alegrias que as diferentes
brincadeiras e actividades promovem nestas. Ao vivenciar essas experiências de
uma forma partilhada, as crianças e jovens acabam por fortalecer laços de
amizade que as marcam para o resto da vida.
Se o Covid19 promover uma mudança de paradigma no
quotidiano das pessoas, esperamos que a Rua recupere a importância de outrora.
Caberá talvez à Escola, fazer uma melhor gestão do seu currículo, permitindo a
valorização deste tempo-espaço tão importante…