terça-feira, 7 de abril de 2020

Que saudades da Rua! Esse espaço de vivência tão importante!


Num tempo de isolamento social, nunca a Rua fez tanta falta.

Começamos esta consideração com uma frase do psicólogo Eduardo Sá que nos diz: “A mim o que me preocupa é que os pais muitas vezes digam que quando eram crianças brincavam, tinham uma vida ao ar livre, tinham uma vida muito mais livre e que não queiram dar aos filhos aquilo que eles tiveram de melhor na sua infância.”
Reconhecendo os pais o valor da Rua para o desenvolvimento e crescimento das crianças e jovens, como acabaram por se tornar tão castradores dessa liberdade para os seus filhos? Esta pergunta é o mote para toda a nossa reflexão num período tão limitador de liberdades como o promovido pelo Covid-19.
Eduardo Sá vai mais longe quando sugere que “o Brincar” deveria ser Património Imaterial da Humanidade, declarando que “nunca ouvi falar tanto das crianças e nunca vi que se espatifasse tanto a infância”, com menos de 1h por dia para brincar para cerca de 70% das crianças portuguesas.
Já em 2001, o Professor Carlos Neto falava em analfabetismo motor, abordando a iliteracia física e motora devido ao desaparecimento ou quase extinção da brincadeira de rua.
O problema não é novo. Mas a necessidade de alterarmos este paradigma talvez nunca fosse tão urgente como agora, após semanas de isolamento em casa.

As recomendações da Organização Mundial da Saúde
Em 2018 a OMS publicou um documento que pretendeu “preencher uma lacuna” sobre a actividade física em idades mais precoces. Assim, aos bebés com menos de um ano, sugere-se a utilização dos tapetes interactivos e de pelo menos 30 minutos diários em posição de bruços. Já entre o um e os cinco anos de idade é recomendável que as crianças se mantenham activos pelo menos em 180 minutos diários, a brincar. Mesmo que a brincadeira não seja “energética” ou se qualifique como “actividade física”.
Sendo a primeira infância um período muito rápido de desenvolvimento cognitivo e físico pretende-se que um estilo de vida activo em idades tão precoces seja catalisador de níveis de actividade física ao longo da vida.

Os lamentos egoístas da vida adulta em “Tempo Covid19”
Também sobre o teletrabalho neste período, lemos várias notícias que alertavam para as dificuldades dos pais lidarem com os diferentes papéis e tarefas dentro de casa. Assumir a responsabilidade de Pais, Funcionários e Professores pode ser bastante complicado. Mas se um adulto não consegue lidar muito bem com essa variabilidade de responsabilidades, imagine-se como será a vida de uma criança que entra na Escola às 09h, sai às 17h30 para o ATL, saindo deste apenas às 19h, em que tem muitas vezes que ser aluno de matemática, estudo do meio, português, ginasta e músico, sem poder sequer ser CRIANÇA.

A falsa sensação de insegurança
Segundo os últimos rankings do Instituto para a Economia e Paz Portugal tem-se situado no Top 5 dos países mais seguros e pacíficos do Mundo. Ou seja, também não será por aqui que a Rua tenha perdido a sua importância. Com certeza que os avós de hoje não gostavam menos dos seus filhos do que os pais de agora, para permitir que a Rua fosse tão vivida há alguns atrás.

Por todas estas razões, continuamos sem conseguir perceber o porquê do desaparecimento de um dos melhores Contextos da desenvolvimento do ser humano.
Assim, deixamos a partilha daquilo porque entendemos que a Rua seja algo de tão importante, dividindo o seu conceito em três sub-dimensões.
1.    Rua enquanto contexto de desenvolvimento – olhamos muito para a Rua enquanto espaço-tempo de vivência motora repleta de estímulos desafiadores do corpo e do risco. Desde o acto mais fino de apanhar um caracol ao desafio total de uma subida a uma árvore, a Rua actua de uma forma Natural sobre o Corpo, dando-lhe o tempo e o espaço necessários para o seu crescimento. O facto de não haverem adultos por perto a constranger a liberdade de cada criança com regras e obstáculos, permite uma emancipação das crianças e dos jovens para os ajudar a eles próprios, por sua conta e risco, a desenharem e ultrapassarem os seus próprios limites. Aqui as brincadeiras e as actividades não têm hora para começar nem tempo para acabar. Não há uma sala de aula, nem um campo pré-definido. A criatividade natural das crianças e jovens permite um número de vivências quase infinitamente maior que aquelas vividas na escola.  
2.    Rua enquanto ambiente de socialização – numa sociedade cada vez mais individualista e egocêntrica, a Rua aparece novamente como um excelente meio de convívio social. O facto da Rua promover muito a cooperação (e também a oposição) entre crianças e jovens, potencia a valorização do Nós sobre o Eu. Além disso, a Rua é ainda um ambiente de constante partilha, seja de objectos, de vivências e até de alimentos. A força  e o encorajamento na adversidade, a resiliência para a superação, e a congratulação e partilha do contentamento, são comportamentos que só vividos em comunidade permitem o desenvolvimento do lado social do ser humano.
3.    Rua enquanto local de vivência emocional – o facto da Rua ser um espaço muito rico ao nível Ecológico e Sociológico, potencia também uma constante estimulação do lado emocional do indivíduo. O binómio desilusão vs felicidade constantemente presente neste ambiente, através dos seus diferentes obstáculos e barreiras, cria nas crianças e jovens uma necessidade muito grande em saber lidar com as várias frustrações e alegrias que as diferentes brincadeiras e actividades promovem nestas. Ao vivenciar essas experiências de uma forma partilhada, as crianças e jovens acabam por fortalecer laços de amizade que as marcam para o resto da vida.     

Se o Covid19 promover uma mudança de paradigma no quotidiano das pessoas, esperamos que a Rua recupere a importância de outrora. Caberá talvez à Escola, fazer uma melhor gestão do seu currículo, permitindo a valorização deste tempo-espaço tão importante…